Armar arapucas; soltar o diabo

Um graveto no pescoço fino, enquanto o coisa-ruim toca uma sinfonia canhestra
01/02/2010

Toda criança aprisiona um pequeno demônio dentro de si. Na jaula exígua, o corpo frágil em formação, ele debate-se — cauda, guampas, capa, cetro pontiagudo —, expande-se à espera de uma fresta para escapulir, ganhar a diabólica liberdade e infestar o mundo com o enxofre a borbulhar de suas ventas. Não há espaço para Cérbero, mas se necessário, ele (o cão monstruoso) também é convocado. É preciso estar atento, andar na linha, obedecer aos pais, rezar antes de dormir, temer a Deus, nunca baixar a guarda. Ou, então, contar com a sorte.

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Lembro de ti, passarinho. Sabiá do peito vermelho. A majestade do pequeno matagal ao redor de casa — a nossa floresta negra, intransponível em meus sonhos de menino. De onde algum Mefistófeles nos observava à espera de um deslize, de uma escorregadela. Éramos vigilância, receio e empáfia: mistura para o antídoto contra nossos medos. Ali, caçávamos. Setra em punho, pedras no embornal, mira afiada em latas de azeite sobre o muro dos vizinhos. Éramos caçadores impiedosos, o sangue agitava-se em nossas veias. Pequenos vulcões à espera da erupção, derramaríamos nossa lava sobre tuas penas, tuas e de teus companheiros. As batalhas consumiam dias inteiros. Extenuados, mas felizes, regressávamos a casa com o cheiro de pena e sangue impregnado nas mãos. Dentro de nós, o diabinho remexia-se. Temia libertá-lo.

Mas naquela manhã, não resisti. Avistei de longe, no carreiro que nos levava às armadilhas, a arapuca maior desarmada. Não era minha. O verdadeiro dono, meu primo, tomara outros caminhos na caçada. Corri ao seu encontro. Lembra? É claro que lembra. Ninguém esquece a morte a entrar pela garganta. Você, sabiá orgulhosa, a debater-se na prisão de bambu. Gorda, olhou-me com curiosidade, logo transformada em ódio e desprezo. A maciez das suas penas ainda está na ponta dos meus dedos. Sempre que vejo um pássaro da sua raça, lembro-me dos seus últimos segundos a implorar uma clemência que nunca veio. Ao meu lado, o pequeno demônio, libertado enfim de minhas escuridões, atiçava-me: eu, um urubu a destrinchar a carniça viscosa, a lamber os beiços diante do prato transbordante de vermes.

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Caçar passarinho é uma arte. Requer paciência e astúcia. Quanto mais sagaz diante do pequeno alvo, maiores são as chances de atingir o peito ou a cabeça do indefeso animal. É preciso medir com esmero a distância, a força ao esticar a atiradeira, o tamanho da pedra. Compaixão pelo pássaro é sinal de fraqueza, nunca perdoada. É preciso matar com gosto e sem qualquer dó. O bom caçador sabe que as portas do inferno sempre lhe estarão abertas. Perdoam-se somente corruíra e andorinha. O código de ética dos pequenos caçadores de passarinho é claro e incisivo: nunca volte suas habilidades contra as frágeis penas de qualquer uma destas aves. Só não sei por quê. Tudo começa na escolha dos materiais: um bom galho em forma de V para o cabo, onde serão fixados as tiras de borracha e o couro. O tamanho e a capacidade de tensão da borracha dependem do gosto de cada um. Mas é preciso que tenha potência suficiente para matar uma pomba gorda. Ou, no mínimo, transformá-la numa massa de pena e sangue incapaz de alçar vôo. Todo caçador, além de matar, precisa destruir as virtudes do pássaro.

Sempre fui um caçador por sobrevivência. Entre prédios que despontavam em C. — este útero infértil a que nos acostumamos —, mantínhamos as heranças da roça, do sangue indígena do pai, dos gestos bruscos da mãe. Negávamos a todo custo uma urbanidade indesejada, imposta pela necessidade. Ao chegar em casa com o embornal cheio, a mãe gritava: “Já pro tanque com estes bichos”. Lá, depenava-os com dedicação. Nus, expunham um corpo, muitas vezes, esquelético, sem grandes porções de carne. Meus passarinhos eram pele, osso e arrependimento: uma geometria que, naquela época, não me causava qualquer engulho nas tripas que aprisionavam o canhim. Depenados, a tesoura de costura da mãe abria-lhes a barriga. Um corte firme a partir do ânus até as bordas do pescoço. Com o dedo molhado na torneira do tanque, devastava a pança dos bichinhos. Alguns ainda guardavam restos frescos de sementes. Em seguida, jogava-os na panela sobre o fogão a lenha, juntamente com a carne do dia. Minha recompensa borbulhava entremeio a coxas e asas de frango.

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Roubei-o da arapuca. O coisa-ruim de patas bifurcadas revolvia-se, cutucava-me as paredes do corpo: mate-o. Na encosta, antes de chegar em casa, você espremido entre os dedos, depositei-o no pequeno clarão aberto pela hoste de caçadores sanguinários. Era proibido matar os passarinhos capturados na arapuca. Iam direto para a gaiola: prisioneiros de guerra à espera da sentença. A morte estava destinada aos que nos desafiavam da altura dos galhos. Estes, o baque fofo da pedrada no peito levava-lhes ao silêncio e à panela. Não só roubei, como envergonhei o código de conduta dos caçadores. Tudo guiado pela perfídia do grão-tinhoso oculto. Você olhava-me em desespero, lembro. Como esquecer, se eu tecia a morte com habilidade de artífice? Segurava-o com a força necessária, medida. Era, sim, um exímio arquiteto da morte. Sopesava o ódio e o tempo necessários para o aniquilamento. O olhar de desespero, aos poucos, transformou-se em fúria e indiferença. Tentava dizer-me que estava preparada para o fim, coisa para a qual eu nunca estaria. Éramos um só corpo irmanado pelo desejo de extinguir-se. Uma briga demasiado desigual. Suas pequenas asas sufocadas pelos meus tentáculos, dirigidos pela astúcia do dianho. Libertado da escuridão do meu corpo, regia a orquestra a tocar a canhestra sinfonia. Você, sabiá do peito vermelho, timoneiro a levar-me pelo rio de esquecimento. Em transe, recebi aquele graveto das patinhas bifurcadas ao meu lado. Uma faca pronta para eviscerá-la. Não iria destrinchá-la a partir do ânus até o pescoço. Não. Queria encará-la até o último gesto. Não tinha pressa. O arfar das penas vermelhas acariciava minhas patas monstruosas. Admito: era gostoso sentir o seu medo a acariciar-me. Eu, o guia do seu destino. Lentamente, obedeci: matei-a com uma crueldade que nunca mais experimentaria. A mão esquerda a pressioná-la na terra, enquanto a direita executava o golpe final. O maestro da morte transformava a batuta em adaga. Quando o graveto furou-lhe o pescoço fino, seu corpo retesou-se, debateu-se, esticou-se todo antes de aquietar-se para sempre. Em mim, um animal descansava, exausto, satisfeito, saciado.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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