Anotações (quase) íntimas e caóticas

Um recorte da aventura de 20 anos do Rascunho com a certeza de que deserto estará sempre à espera
Ilustração: Matheus Vigliar
30/04/2020

8 de abril de 2000
Saio cedo de casa. Tenho 27 anos e muitos projetos absolutamente fora de prumo. Não sou um sujeito equilibrado — ansiedade e expectativa me espetam o corpo magro, míope, daltônico e desajeitado. Chego ao Jornal do Estado, no centro de C. A edição zero do Rascunho está impressa e encartada. Algo esquálido — um simulacro de seu editor — de apenas oito páginas. Na capa, texto sobre Ernesto Sabato, cujo livro Antes do fim me parece um aviso de que a aventura de um jornal literário na periferia do mundo está com os segundos contados.

10 de fevereiro de 2000
O garçom é baixinho e ágil. Passeia entre as mesas com a velocidade de um rato atrasado. No caixa, o dono, um sujeito avermelhado e gordo, apenas observa e dá ordens aos funcionários. Da cozinha, vêm pão com bolinho e cerveja. Somos cerca de dez entusiasmados em torno das mesas cambaias. Numa folha de papel, rabisco a lápis a gênese do Rascunho. A certidão de nascimento do jornal está perdida em alguma gaveta.

7 de agosto de 2000
Falo sobre o Rascunho para uma turma de jornalismo numa universidade de C. “Talvez dure oito edições” é a frase que abandono presa ao previsível pessimismo.

25 de dezembro de 2000
Começo a contrariar a maldição familiar. O plano é simples na teoria: nunca mais emborcar uma gota sequer de álcool. O Natal ruidoso, cercado de crianças e conhecidos, é tempestade a minha volta. Os copos cheios são flechas acesas em direção ao canavial seco. Em minha garganta, um deserto em labaredas.

1° de fevereiro de 2002
O urro do animal ferido explode no silêncio do hospital. A manhã desperta abafada e trágica. A mãe cercada por médicos abraça a morte da filha. Minha irmã está morta aos 27 anos.

8 de abril de 2004
Rascunho já tem 32 páginas, dezenas de colaboradores e milhares de leitores em todo o país. Sigo sendo um homem magro, míope e desajeitado.

7 de setembro de 2004
Estamos envelopando os exemplares do Rascunho para enviar aos assinantes. É um trabalho familiar: eu, alguns sobrinhos e minha mãe. Em meio à lida, ela me olha com severidade e diz: “Você já é um homem, meu filho. Pare com esta bobagem de jornal e arrume um trabalho de verdade”.

21 de janeiro de 2005
No dia em que completo 32 anos, arrumo um emprego de verdade: chefe de redação do principal jornal de C.

1° de dezembro de 2005
Peço demissão do emprego de verdade. Prefiro um emprego de ficção.

24 de julho de 2006
Nasce minha primeira filha.

5 de agosto de 2009
Nasce meu primeiro filho.

8 de abril de 2010
Rascunho completa dez anos. Em entrevista a um jornal de C., digo num misto de arrogância e simplicidade: “Isso já foi longe demais, passou dos limites”.

25 de dezembro de 2010
Completo dez anos atravessando o deserto. Não há oásis possível em meio a esta caminhada. Estranhamente, eu e o Rascunho insistimos feito dois burros teimosos.

12 de novembro de 2012
Estou novamente morando com minha mãe. Seu corpo definha rapidamente. O câncer a abocanha com ferocidade, pressa e nenhuma gentileza.

5 de maio de 2013
Vou à missa com minha mãe. Havia muito tempo não entrava numa igreja. Ela anda com dificuldade. Ampara-se no meu braço e senta-se para levantar-se somente ao final da missa. Reza em silêncio. Devido à traqueostomia, já não fala. Tenta convencer Deus de que é digna de entrar em sua morada. Os lábios apenas tremem palavras sagradas. Eu a olho admirado com tamanha fé. Ela não imagina que torço para que esteja ao lado de Deus o quanto antes.

13 de julho de 2013
Desço a escada em caracol. Estaco em meio aos degraus metálicos. O sol bombardeia a janela. O silêncio absoluto e a ausência de cheiro de café pela casa avisam que a mãe está morta. Abro a porta do quarto e a encontro toda retorcida sobre as cobertas bagunçadas. A traqueostomia — um buraco gosmento e fétido no pescoço — e a jejunostomia — outro furo na barriga — perderam para o câncer.

13 de julho de 2013
Deixo a mãe morta na cama e saio para comprar um caixão. Compro o mais barato. Na funerária, uma mulher escolhe o menor caixão disponível para enterrar o filho. Ela o trouxera do Piauí para tentar um tratamento num hospital do Sul. Não deu certo. O menino voltará para casa no bagageiro de um avião.

14 de julho de 2013
Enterramos a mãe na mesma tumba da filha. Para colocar o frágil caixão, o funcionário do cemitério retira os ossos de minha irmã e os coloca num pacote plástico preto. Mãe e filha, enfim, juntas para sempre.

15 de outubro de 2013
Retorno da Feira do Livro de Frankfurt. A goteira no canto da lavanderia continua lá.

9 de novembro de 2013
Lanço Na escuridão, amanhã. Nunca o título do livro fez tanto sentido.

10 de maio de 2014
Estou em Paramaribo, capital do Suriname. O detetive garante que só preciso ir ao centro da cidade. Ele me encontrará no início da Waterkant. Quando chego, como prometera, espera-me diante de uma casa branca de madeira. Em seguida, vamos à delegacia. Lá, o delegado e meu advogado me aguardam.

9 de agosto de 2014
O pai me visita. Ambiciona uma trégua ao silêncio que construímos nos últimos 40 anos. Entrega-me um filhote de duroc. Diz apenas uma frase seca: “Pode ficar com ele”. Vira as costas e me deixa ali com o porco que em breve ganhará o nome de Pitoco.

10 de agosto de 2014
Construímos — eu e meu irmão — o raquítico chiqueiro nos fundos de casa. Agora, tenho companhia.

11 de julho de 2015
Pitoco ganha o prêmio Porco Simpatia na Festa da Igreja Matriz de Balsa Nova. Voltamos para casa com um saco de ração de cinco quilos no porta-malas do carro.

15 de outubro de 2016
Nasce minha segunda filha.

25 de janeiro de 2017
Começo a perder o movimento do dedinho da mão direita. Vou ao médico. O diagnóstico é impreciso. Meu segundo livro está pela metade. Faltam-me forças para terminá-lo.

2 de maio de 2019
Leio enquanto a espero na cafeteria. Quando a silhueta preenche o vão da porta, o sol se põe por trás das árvores. Algo me diz que nem sempre a noite traz somente escuridão.

8 de abril de 2020 (em projeção)
Volto ao Bar do Pudim. O garçom segue ali com a agilidade de sempre. Abandonei o álcool há quase vinte anos. Peço pão com bolinho e água tônica. Encontrei as anotações sobre os rumos editoriais para o nascimento do Rascunho. Coloco-as sobre a edição 240, em cuja capa de Marcelo Cipis vejo um reflexo. São 48 páginas, dezenas de colaboradores e milhares de leitores espalhados pelo mundo. Tenho 47 anos. Agora sou um homem magro, míope, daltônico e abstêmio.

25 de dezembro de 2020 (em projeção)
O deserto estará sempre a minha espera.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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