A rosa branca do desespero

Na noite, entre o capim no terreno baldio, a súplica: “Abre as pernas, Fátima”
01/06/2010

Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero (…)
Lavoura arcaica, Raduan Nassar

Abre as pernas, Fátima. A voz, um córrego a cortar a garganta, não exigia. Havia súplica e desespero: abre as pernas, Fátima. O ganido do animal ferido arranhava o muro do terreno baldio. Deita, Fátima. Aqui não. Por quê? No mato, não. Duas crianças a simular a geometria adulta. Fátima, abre as pernas. Por favor. No mato, não. Não lembro da lua na madrugada quando arrastei Fátima para o terreno entre os prédios de C. — este claustro urbano de onde sempre saímos derrotados. Havia escuridão e ânsia em nossos corpos delicados e bêbados. Assim, Fátima, abre as pernas. Os pêlos eram apenas uma ameaça, uma suspeita. Talvez, no escuro, alguém nos confundisse com um casal de amantes. Ou pequenos animais a engalfinhar-se. O capim irritava a pele. Não éramos bichos de couraça grossa e resistente. As desajeitadas mãos tentavam convencê-la, lutavam para transpor aquela arrebentação. Na praia, num fim de tarde, vi um homem se afogando. Batia as mãos como se o ar lhe pudesse entrar pelos dedos em direção aos pulmões. Estava distante e se debatia todo. A luta era muito desigual. Impassível, o mar o mastigava com lerdeza e ódio. De repente, os movimentos perderam energia. Não vi mais nada. Apenas o horizonte já sem sol e o corre-corre na areia. Abre as pernas, Fátima. Bebemos até transbordar. Eu a arrastei, confesso. Sei que a patética cena poderia ter sido evitada: nós dois na madrugada diante do terreno de capim alto, protegidos pelo muro e prédios ao redor. Testemunhas da nossa derrota. Ali, Fátima. No mato, não. Você foi com meu irmão. Foi com todos os meus amigos. Tem de ir comigo. Não fui com ninguém. Nunca fiz isso. Fátima, por favor. Você, Fátima, não abriu as pernas e, durante muito tempo, assombrou a minha vida.

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Quando ela, cujo nome perdeu-se nas dobras da infância, pedia-me para apertar-lhe com toda a minha força os seios, era em ti, Fátima, que eu pensava. Você, víbora revestida de candura, resistiu até o fim. Afogou-se no próprio veneno. O boi pastava o capim em busca do riacho para saciar a sede. E você, menina dos grãos de areia a beliscar a blusa, a espremer as pernas, trançando-as em xis, recusando os volteios das minhas mãos em súplica. Daria meu cálice a transbordar o vinho da devassidão. Tua carne leitosa expelia minha fúria contra o muro. O touro regressava, babando, escavando o solo com as patas bifurcadas. Supliquei, sim, o vão do teu corpo, teu sagrado corpo de líquidos ainda impúberes. Quando o grito clareou a madrugada — Abre as pernas, Fátima —, você assustou-se. Eu também, confesso. Impossível evitar a fuga. Derrotados, ganhamos a rua silenciosa. Agora, quando meus dedos já não saciam a sanha destes seios gigantes, eu penso em ti, Fátima. Na delicadeza do toque e na vergonha da tua boca. Não sei o nome desta que se entrega sem qualquer pudor. Pouco importa, desconfiei desde o começo. O urgente é saber como é. Viemos do mesmo lugar, tomamos a caipira vermelha — mistura de soda cáustica, cachaça, groselha e indiferença. Será que algum dia meu corpo esquecerá o gosto da perdição? Não, não a levei ao terreno baldio. Jamais profanaria o capim em que não pastamos, onde digladiamos sem adaga. Onde não atravessei as fronteiras do abandono. Tomamos o caminho do parque. Na noite, o silêncio se arrastava pela grama. Longe, a chaminé, ereta e eterna, despontava sobre as canchas de areia. Eu tinha medo, claro. Depois de você, Fátima, teria de começar tudo de novo. As súplicas seriam as mesmas. Você, que todos juravam ter deflorado, recusou-me, atirou-me para longe da maldição em brasa. Os meninos, agora te conto, faziam uma roda. Tramavam te desnudar, mergulhar na tua carne branca, lisa, virgem. A infância, Fátima, é uma batalha perdida; e uma grande mentira. Eu, ali, estático à espera do início. Era uma competição. Coisa de piá cujas tripas latejam — pequenos porcos eviscerados a luzir as entranhas ao sol. Todos em sagrada sincronia pelo teu corpo imaginário. Em seguida, a fila. A mão espalmada rumo ao áspero caule. Nenhuma penugem despontava por entre os dedos, que trabalhavam em desabalada fruição. Se a mãe nos pegasse, iríamos rezar horas indormidas para nos livrar da maldição da carne. Era necessário borrifar o espírito com a água benta roubada da igrejinha onde eu e meu irmão teimávamos em ser coroinhas. A mesma mão espalmada, calosa, a distribuir a hóstia, a oferecer o vinho. Pequenos aprendizes do demônio a cortar lenha com o serrote. Víamos apenas você, Fátima, desnuda sobre o precário altar de azaléias e gerânios. Os olhos fechados, sem intervalos para o remorso. E a explosão do corpo a escorrer pela parede de madeira.

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Não foi preciso ajoelhar-me e suplicar. As roupas estiradas sobre o piso negro receberam as duas silhuetas. A minha, magra, frágil, alva e assustada. Ela, bojuda, negra e sorridente. Para onde se vai quando não se sabe o caminho? Ela sabia de tudo. Olhava-me nos olhos com a compaixão das santas. Abriu-se em êxtase e disse apenas “venha”. O mergulho cego no vazio daquele corpo. O que teria de fazer? O beijo na boca seca não tinha gosto de nada. O corpo a deslizar, sôfrego, em ritmo canhestro. Um nada e, no céu escuro, um visco a escorrer em forma de cometa. Diante de mim, as tábuas do casebre, úmidas, emboloradas pelo nosso pecado. Meu irmão a socar a minha cabeça. Os amigos a rir do meu corpo de menino mergulhado no infinito de uma mulher, cuja pele em nada lembrava a lisura da tua. Era arenosa, parecia escamar — peixe abandonado ao relento. Quem joga mais longe as faíscas do corpo? Já não me importava competir. Naquela noite, Fátima, quando fui aceito por um corpo estranho, senti a saudade da tua rejeição. No meu ouvido: “aperta mais”. Aos dedos inexperientes faltavam força e maestria para aqueles gigantescos seios, verdadeiros monstros arredondados a me sufocar. E pensava nos pequenos grãos a esconder-se no capim. E em você a esgueirar-se pelo terreno baldio, pequena víbora de língua sedutora. Ave assustada. Já não havia mais volta, Fátima. Era preciso seguir. Diante dos olhos, a noite a gotejar escuridão.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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