Queria pegá-lo no colo. Antes era fácil. Bastava um pequeno impulso e ele grudava em mim. Preservo a foto tirada sobre a bicicleta de plástico. Parecia assustado. Nunca esteve confortável neste mundo. Nem mesmo diante do trem abandonado no museu, que tanto o fascinara. Aquele sorriso suportou pouco tempo. Ele cresceu muito em 20 anos. Decido abraçá-lo. É mais alto que eu. Somos dois desajeitados. Nossos corpos não foram treinados para o afago, o carinho, o toque. Envolve-me com força desproporcional. O cheiro do seu corpo é bom. Barba feita, cabelo cortado. Estamos num lugar distante, no meio do mato, entre estradas de terra, pássaros e árvores. Na portaria, um segurança. Pela chácara, as pessoas andam, comem, falam muito, silenciam muito. Quando o mandamos para ali, não sabíamos como seria. Agora, conhecemos a nova casa — uma casa coletiva, compartilhada com muitos outros na mesma situação. E muitas histórias espalhadas pelo corpo. Todas muito ruins.
Enchemos o porta-malas: comida, roupas, livros, gibis, mangás. Um arsenal para uma batalha desconhecida, contra um inimigo perigoso. O domingo seria longo. Não tínhamos alternativa. Pegamos a rodovia e seguimos em direção ao litoral. Somos quatro no carro: meu pai e suas histórias; eu e meu silêncio; minha mulher e sua fé; minha mãe e seu câncer. Cada um carrega o que é possível. O pedágio é caro. A neblina dificulta a visibilidade. Descemos a serra do mar. Dirijo com cuidado, devagar. Receio que alguma engrenagem se desprenda do corpo da minha mãe. Daria trabalho parar no acostamento e recolher uma peça cujo tempo de vida útil está vencido. “Será que ele está bem?” é a pergunta que não nos fazemos. A cada sinal de vida na estrada — casa, chácara, cavalo, galinha — meu pai conta uma história, faz um comentário. Ele conhece um mundo que desconheço. Invariavelmente, somos dois estranhos na mesma jaula.
O plano era levá-lo à força. Já não havia saída. Nada o convencia. Nenhum trem da infância era capaz de arrastá-lo para outro lugar, para outra estação. Uma tarde quente, as algemas lhe sossegaram a vontade de continuar resistindo. Ele caminha ao meu lado. Apresenta-me o novo território. Subimos em direção à casa central. O pescoço arcado para frente é herança familiar. A calça estampa vários remendos. Noto que era minha. Nossa herança material também é frágil e destroçada. No fim da subida, uma piscina. O homem baixinho implora a uma senhora gorda para ir embora. A mulher esconde o rosto entre as mãos e está prestes a chorar. A insistência dele me chama a atenção. Faltam-lhe dois dentes na lateral da boca, usa bermuda jeans e camisa xadrez. Uma indisfarçável careca lhe perfura a testa. Este mesmo homem estará o tempo todo por ali — um galizé ciscando no terreiro em busca de milho —, sempre implorando a algum parente que o leve, garantindo que está limpo, curado, livre.
No restaurante, pedimos a especialidade da casa. Levamos lasanha à bolonhesa, com arroz e medalhão de mignon. Salada verde para acompanhar. Torta de banana de sobremesa. Comida pesada, com sustança. Tudo embalado em papel alumínio. No entanto, nada ficou muito aquecido no improvisado micro-ondas. Na parede as palavras impressas em A4 branco: “reservado para a família de V.”. Então, éramos sua família — o que restou dela: um tio magro, uma tia magra, um avô nem gordo nem magro, uma avó cadavérica. À mesa, ao lado da churrasqueira, apenas duas cadeiras. A família em franca extinção fora reduzida à metade. Surrupiamos outras cadeiras e montamos o banquete. É sempre possível lutar contra a extinção. Na mata vizinha deve viver algum mico-leão-dourado.
Em pouco tempo, o almoço desaparece. Nós comíamos de garfo e faca. Ali ao lado, minha mãe engolia pela sonda gotas de um líquido creme. Que gosto tem a comida que entra por um buraco na barriga? Parecia feliz em ver o neto após tanto tempo. Mas é difícil saber: no rosto deformado, o mapa é sempre incerto. A solidão, às vezes, é espantosa.
No prato, nada restou. Levanta-se e acende um cigarro junto a um dos novos amigos. Todos fumam muito, o tempo todo. É permitida uma carteira por dia. Minha mulher recolhe os pratos, passa guardanapo de papel na mesa e nos talheres. Limpa nossos vestígios. Meu pai, após esvaziar seu embornal de histórias, mostra o sapato marrom e bege. Garante que são os mais confortáveis que já teve. Não lhe digo que nada combina naquele conjunto: sapato não se usa com calça de agasalho. A camisa pólo realça a falta de elegância. O sapato é maior pelo menos dois números que o adequado. Ele calça 40. Eu, 42. O sapato era meu. Nossa herança nunca tem o mesmo número. Ele diz que é confortável, que não machuca o pé. Pode ser. Mas não combina. Quando deixei o sapato (novo) na casa da mãe para doação familiar, achei que iria parar nos pés do meu irmão, que usa 43. Antes um pé sufocado por alguns dias até o couro lassear que um pé de palhaço vagando pelas encostas da serra do mar. Nossa família não entende nada de moda. Nem de circo.
Alegre, ele nos mostra o quarto. Quatro camas empilhadas. Na parede, um revólver desenhado, fotos de mulheres de seios à mostra e origamis. “Eram do outro morador”, alerta-nos sobre o revólver e os peitos de fora. A decoração é anárquica, mas o local está relativamente limpo e organizado. De tempos em tempos, eles mudam de quarto. Agora, está no sete. Já esteve no nove. Reclama que um dos colegas uiva a noite toda, parece um lobisomem. Talvez seja. Converso com o rapaz que faz origamis. É descendente de japoneses. Mas os traços estão se apagando do rosto. Mostra-me com orgulho a sua arte: pulseirinhas de fios de lã, enrolados em plástico de garrafa pet, e origamis. Revela de onde vem a inspiração: dois livros em japonês com vários pontos, estratégias de montagem, etc. Penso em perguntar se sabe japonês. Mas simplesmente lhe desejo sorte e saio do quarto.
Quando regressamos até o local do almoço, uma correria chama a atenção. “Não se preocupem. Alguém vai embora”, ele nos explica. De repente, o homem baixinho, banguela na lateral da boca, bermuda jeans e camisa xadrez, passa carregado em direção à piscina. Ouço apenas “três” e o barulho do corpo esguichando água para todos os lados. Ele conseguiu convencer a família. Está indo embora. Pode ser que volte em breve. Nunca se sabe. Todos temem o Lago da Menina Morta. Não é necessário explicar o porquê do nome. Então, resolveram criar o ritual: jogar na piscina os que estão de partida.
A noite se aproxima. É preciso pegar a estrada, subir a serra, retornar a C. Minha mãe está muito cansada. O câncer se alimenta com voracidade. Sobra pouca energia ao corpo doente. Na despedida, junto-me ao abraço de avó e neto. Somos um amontoado disforme e desajeitado. Minha mãe fecha a traqueostomia com o dedo e pronuncia um “se cuida”, que significa muitas coisas. Tenho vontade novamente de pegá-lo no colo. E jogá-lo na piscina. Não consigo mais carregá-lo. Quem sabe na próxima visita. Ele caminha para o quarto. Passa ao lado da piscina. Sua roupa está seca. Vejo os remendos na calça. Ao meu lado, meu pai e os sapatos exagerados. Da próxima vez, levarei um par de tênis número 40.
NOTA
Crônica publicada originalmente no siteVida Breve.