Tenho um dicionário cuja alma está fraturada. Faltam-lhe palavras — ao final, um abismo de silêncio diante do último verbete: o irônico vulgívago. Ou seja, termina naquele que se avilta, se rebaixa, se prostitui. Ganhei-o (ou quase o surrupiei) na infância que já não existia. Por volta dos quatorze anos, office-boy em um grande jornal de economia, via aquele dicionário passar de mão em mão entre os jornalistas. Sovado, aos poucos, ganhou ares de tralha. Aqueles escribas tinham muitas dúvidas. A caminho do lixo, pedi com olhar de perdigueiro faminto: “Posso ficar com este dicionário?”. Queria muito um dicionário grandão, pesado, a ostentar um conhecimento que jamais terei. Está aqui na estante ao lado de muitos outros livros e enciclopédias. Sua vida se interrompe de forma abrupta na página 1.486, no vulgívago. As demais letras — W, X, Y, Z — são apenas um silêncio shakespeareano.
A leitura avança para o final do belo romance italiano — uma narrativa de amor, perdas e luto —, quando encontro a palavra hebraica shakul, para definir os pais cujos filhos morreram — na chamada ordem antinatural da vida. Mas no caos, quem sabe qual é a ordem natural da vida? Vou ao escritório doméstico e contemplo meu dicionário quebrado. Está (não sei por que motivo) entre uma história do cinema e as cartas de John Lennon. Ele não tem palavras suficientes para dimensionar tamanha dor dos pais. Abro-o na página 1.013 e leio a definição de órfão — adjetivo que só engendra a ordem natural da vida. Ou podemos dizer órfão de filhos? Filhos protegem os pais na mesma dimensão do caminho inverso? No meu dicionário não há palavra para a solidão diante da morte de um filho — aquela brasa cravada no peito. Palavras, às vezes, têm pouca serventia.
Primeiro a mãe foi órfã. Ela tinha pouco mais de quarenta anos, mas parecia uma mulher velha, sofrida pelas intempéries de uma vida na roça, um marido alcóolatra e violento e o subemprego de doméstica em C., esta cidade grande e, como tal, injusta. Era uma mulher infeliz cuja boca banguela raramente esboçava um sorriso. O rosto da mãe contava a sua história. Quando cheguei com a notícia (na família, sempre fui uma espécie de obtuso Hermes, por um rio poluído e raso), ela já sufocava o luto entre as mãos ásperas de dedos nodosos, sentada no pequeno sofá. Dos grotões da roça, veio a tragédia: seu pai, meu avô, havia se suicidado. O corpo dependurado numa árvore, amparado pela solidão de uma corda, a balançar no desespero da vida. Naquele dia, a mãe chorou como se tivesse vergonha, um choro represado, sem espasmos ou grandes soluços — a tristeza trancafiada nas entranhas.
Alguns anos depois, a mãe ganiria feito uma besta ferida. Além de órfã, seu miserável dicionário ganharia uma desconhecida palavra: shakul. A manhã esgarçava os braços sobre o mundo quando eu (sempre eu), voltei do hospital com a notícia: sua filha, minha irmã, havia morrido. Como sou covarde feito um anfíbio no deserto, apenas a levei ao hospital. Na frieza de um hall, cercada de médicos e enfermeiras, a bomba explodiu: o grito seco e agudo rodopiou pelo mundo. A filha estava morta. Uma moça saudável de vinte e sete anos, morta em menos de doze horas. Foi ao hospital com dor de cabeça e simplesmente morreu. Agora, ali encolhida na solidão asséptica do hospital de nome sagrado, uma mãe órfã e shakul. Em mais alguns anos, ela, a mãe, também morreria e me entregaria a palavra órfão num caixão ridículo, enfeitado com ridículas flores de plástico.
Depois, foi a vez do meu irmão. A roda que nos esmaga nunca deixa de girar. Tritura-nos sem nenhuma delicadeza. Ele surgiu entre os cedros. A escuridão já envolvia tudo ao redor. Na capela mortuária, o zunzum de vozes quebrava um silêncio inevitável. Logo, o corpo da menina chegaria. Algo explodiu dentro da cabeça. O estrondo silencioso da morte a arrastou para a UTI, onde permaneceu por semanas. Minha sobrinha — filha do meu irmão — tinha dezesseis anos. A barriga volumosa abrigava uma menina. Uma criança a carregar outra durante nove meses. No parto, a explosão. A filha nasceu. A mãe morreu.
Os pinheiros em fila não impedem a chegada do vento gelado. O descampado verde, com os nomes a indicar o limite entre a vida e a morte, nos aguarda a todos. Caminho por ali como se fosse possível ser invisível ao menos uma vez. A noite será longa. Café é uma maneira de disfarçar o desconforto da espera. O gramado irregular se estende por uma longa distância até os pés dos pinheiros ao fundo. O cemitério é novo. Poucos túmulos maculam a grama com suas plaquinhas de bronze. As datas de nascimento e morte comprovam a incerteza da vida. O vento torna o início da noite ainda mais frio. O inverno não se preocupa com a morte alheia. Permaneço algum tempo a olhar para longe. Nuvens se espraiam por trás das árvores. A noite nos abraça, mas não traz qualquer conforto.
Quando corri para casa para avisar a mãe sobre o suicídio de seu pai, meu avô, eu já tinha o dicionário quebrado. E, como ele, faltavam-me muitas palavras na distância entre o cérebro e a boca. Sempre me faltaram muitas páginas. Era apenas um jovem assustado e inseguro. A notícia havia chegado da lonjura da roça pelo telefone. Lembro da cara espantada de quem recebeu a ligação: “Seu avô morreu… Ele se suicidou”. Assim: poucas letras a tecer palavras simples. Não precisava de dicionário para decifrá-las, apesar de que até hoje não sei muito bem o significado do substantivo masculino suicídio. Talvez seja apenas uma imagem: o corpo do avô pendurado no vazio feito um pêndulo inerte.
Tenho muitos dicionários na biblioteca construída desde a adolescência. Só um está incompleto, fraturado. Mas é o único que abriga um incômodo e deslocado vocábulo em hebraico. Escrevo a lápis na última página — uma folha grossa, usada de anteparo para a quarta capa da encadernação — as seis letras que definem algumas das nossas tragédias familiares.
Shakul: minha mãe, meu irmão.