Ainda não posso morrer. A voz em formação, a experimentar os contornos da linguagem, transforma o temor em palavras: papai, não quero que você morra nunca. Calo-me. O ínfimo silêncio de um prosaico telefonema transforma-se em eternidade. As sílabas agigantam-se em meu cérebro, dão voltas por todos os cantos possíveis e acomodam-se em algum lugar já acostumado ao derradeiro fim. M. — minha filha de oito anos — está com um celular nas mãos, em sua confortável casa em C., agarrada a esta preocupação: a morte. Ela não teme a morte frívola, esta que anda por aí a levar gentes o tempo todo, mas, no alvoroço da infância, a apavora uma morte específica: a morte do pai, o meu desaparecimento. Causa-lhe pavor a ideia da ausência, de uma solidão afetiva, nesta batalha sempre perdida. E esta talvez seja uma das graças da vida: lutar todos os dias com fúria, método e artimanhas uma batalha cuja derrota é inevitável.
Entendo a preocupação de M. e a acolho em explicações deploravelmente simplórias. Juro, envolto em dúvida indisfarçável, que irei morrer bem velhinho. Não digo caduco — afinal, todo caduco precisa de alguém ao redor. Não sei se M. gostaria de passar parte da vida a velar minha loucura. Explico-lhe que sua mãe já é adulta e ainda tem os pais vivos e saudáveis. Logo me arrependo: eu sou adulto e órfão há vários anos de uma mãe devorada sem nenhuma pena por um amaldiçoado câncer, cuja voracidade lembrava as línguas incandescentes de um vulcão. A morte não tem lógica. Mas M. parece convencida e, aos poucos, as preocupações com a minha possível morte se amainam, perdem o furor. Eu a entendo. Afinal, nos dias anteriores fizemos coisas incríveis juntos, como tomar banho de mangueira e comer um bolo colorido com as bordas transbordando açúcar.
Carrego no lombo um mapa com muitas mortes — uma estrada esburacada ladeia precipícios e despenhadeiros. Ao percorrê-la, é preciso muita cautela mesmo estando, de alguma maneira, acostumado com as tragédias a triscar os calcanhares. A morte me espreita com olhos lupinos pelas frestas dos dias. Ao chegar a C. — um menino da roça espantado com a cidade grande —, logo me deparei com a primeira tragédia: o filho caçula do dono da chácara de flores onde morávamos morreu assassinado com várias facadas. Digo sempre que foram trinta facadas. Mas, obviamente, não tenho nenhuma certeza disso. Cravei este número em minhas memórias inventadas. Mas lembro perfeitamente da foto na capa do jornal popular que o pai levou para casa e deixou largado sobre a mesa de fórmica: a porta do carro aberta, o corpo caído para fora, todo ensanguentado. Naquele tempo, fotos assim vendiam muito jornal. Hoje, nem sei mais o que é feito deste tipo de jornalismo dos nossos horrores cotidianos.
Encontrei a mãe toda engruvinhada no velho sofá de napa. As mãos de dedos nodosos sufocavam a morte do pai, meu avô — um homem robusto, braços fortes, olhar azul e sorriso entre o tímido e o irônico. Na minha meninice, ele sempre fora mais importante que meu pai: um sujeito grosseiro, bêbado e mitômano. Nunca tive medo do meu pai morrer. Quando cheguei em casa para dar a notícia do suicídio, uma tia havia se adiantado. Ali no sofá, a mãe chorava absurdos. Era a primeira vez que a via chorar com intensidade. Quando apanhava do marido, meu pai, ela sufocava a vergonha em um grunhido miúdo, escondida pelos cantos da casa. Lá nos grotões de uma roça inóspita, restou o galho da árvore onde o avô amarrou a corda e atirou o corpo a balançar no vazio.
O uivo retornou ao nascer do dia. No hospital, com a luz da manhã a insinuar-se, a mãe outra vez estava diante da morte. Eu recebi a notícia do médico: sua irmã morreu. Simplesmente morreu. Entrou no hospital com dor de cabeça e umas doze horas depois estava morta. Sem qualquer explicação, aquela morte transformou a mãe num urro ancestral, um urro de dor, o desespero em todos os seus contornos. Qual será a dor de uma mãe cuja filha caçula morre assim de repente, aos vinte e sete anos, sem sinais de doença, sem suspeitas, sem nada? Ouço aqueles berros até hoje. A morte, às vezes, é barulhenta.
Não me espantei quando recebi a notícia: meu primo, cuja infância dividimos em brincadeiras e arruaças, havia sido assassinado pela polícia com cinco tiros. Não tenho certeza se foram cinco, quatro ou seis tiros. Mas o número cinco sempre me pareceu mais real para esta morte. Uma morte um tanto previsível em nosso inexistente testamento familiar.
Chorei a morte da minha sobrinha: uma menina de dezessete anos. Engravidou, ganhou um bebê e morreu logo após o parto. Lembro do meu irmão a esperar a chegada do corpo no cemitério. Era início de uma noite fria. Estávamos todos lá. A morte, às vezes, une as pessoas.
Eu toquei a morte com a ponta dos dedos. É fria, sim. Bem fria. Quando acordei, algo me dizia: a mãe havia morrido. Desci as escadas, entrei no quarto e lá estava ela, a mãe, retorcida entre as cobertas. Apertei-lhe as pernas de pele e osso. Lembrava um cipó calcinado por um raio. Morreu agonizando na madrugada. Já não falava. Rastejava pela casa feito uma lesma sem gosma. Alimentava-se por uma mangueirinha enfiada na barriga. Era uma triste figura, esculpida por um artista despreocupado com a estética. Seu corpo foi depositado no mesmo túmulo da filha. Para abrir espaço, o funcionário do cemitério apenas enfiou os ossos da minha irmã num saco plástico preto e deixou ali ao lado do caixão da mãe. Enfim, mãe e filha em eterna companhia. Quando o próximo morrer, a mãe também vai para um saco plástico preto. Só não sei quantos sacos de ossos cabem naquele buraco.
Quando encontro meu pai na rua — moramos a poucos metros um do outro —, penso que ele talvez seja eterno. Não morre nunca. Não que eu deseje sua morte. Não desejo nada em relação a ele. Mas penso: como pode ainda estar vivo? Parece uma alma penada, um zumbi bêbado, um quase maltrapilho a perambular sem rumo. Nunca tivemos nenhum afeto. Agora, quando sou um homem a alguns passos da velhice, simplesmente o ignoro. É o melhor que posso lhe entregar: minha indiferença. Nunca imaginei a frase “papai, não quero que você morra nunca”. Muitas vezes, desejamos sua morte nas noites de violência e bebedeira. Mas aquelas noites já estão trancafiadas no baú familiar de horrores. A irmã morreu, a mãe morreu. Meu irmão esteve na UTI há poucos dias — esteve a ponto de sofrer um infarto ou um AVC, segundo os médicos. Meu pai é este zumbi. E eu sou apenas um espectador talvez privilegiado desta fúnebre odisseia.
M. não sabe de quase nada disso. Um dia saberá. Afinal, não teve escolha ao ser atirada neste lado do mundo. Sabe apenas que a avó paterna morreu de uma doença grave. Está no céu, segundo ela. Está num buraco de cimento, segundo eu. Temos delicadezas bem distintas. Mas por ora ela tem uma grande preocupação: a minha morte.
Antes de desligar o telefone, numa tentativa de animar M. e aliviar um pouco seus sombrios pensamentos, disse-lhe: logo, nos encontraremos novamente e vamos tomar banho de mangueira. Juntos, dias antes, no deck diante de casa, abri a torneira ao lado da roseira de flores vermelhas. Com a mangueira, produzi uma chuva magricela. M. estava de maiô colorido e imaginava que estávamos à beira de uma piscina. A água borrifada em jatos irregulares através dos raios de sol formava um arco-íris ao alcance das mãos. Era bonito. A mãe plantou a roseira pouco tempo antes de morrer. Está ali há quase doze anos. A mãe morreu aos sessenta e sete anos. M. tem oito; eu, cinquenta e dois. Enquanto for possível, pretendo não morrer nunca.