A menina e o cão triste

A tentativa de subverter a realidade com a doação de um livro, em que o personagem principal é um feliz cãozinho
Ilustração: FP Rodrigues
01/08/2023

O cão fareja o chão de pedriscos. A poeira flutua em direção ao céu azul. Eu percorro a rua a esticar as pernas num caminhar que tenta disfarçar a rigidez ainda incipiente da idade. O inverno já cobre as ruas e as casas com a melancolia de manhãs preguiçosas. Nesta época do ano, quando o roseira perde folhas e torna-se mais delicada, a vida ganha uma preguiça lânguida, diferentemente dos dias mais quentes, que atiçam os corpos em permanente ebulição. Pelo menos aqui neste rincão de C., onde o verão, muitas vezes, não passa de um arremedo de deserto com almas penadas seminuas.

Talvez a frieza da manhã deturpe um pouco minha avaliação. Mas vejo um cão triste. Entendo quase nada de animais. Nunca tive um de estimação. Havia alguns guapecas no terreiro de casa na infância. Surgiam da rua, iam ficando, dávamos os restos de uma comida rala e sem graça. Eles se acostumavam à nossa precariedade; nós, às suas carências de animais órfãos. Tínhamos um anêmico pacto amoroso, irmanados numa vida de ausências.

O cão está sempre no mesmo lugar: tem o olhar triste e os movimentos lentos. Às vezes, late enfurecido para um ou outro passante. Para mim, direciona sempre aquela mirada de quem pede alguma ajuda. Nunca ousei me aproximar. Afinal, é um cão com dono. Ou donas, não sei bem. Está em geral preso a uma corrente metálica, ao pé da casa, que abriga um dos puteiros da minha rua. Sim, na curta distância de menos de um quilômetro, dois prostíbulos disputam a atenção de uma clientela em busca de algum conforto entre pernas cansadas, cerveja de qualidade desprezível e o olhar indiferente de um cão.

A casinha de plástico — uma ridícula casinha de cachorro de desenho animado — se mostra insuficiente ao cão triste. Nunca o vi lá dentro. Sempre nos pedregulhos poeirentos, o focinho a farejar algo que não existe. É um falso pastor alemão. Os traços lembram o ancestral majestoso, mas é nítido que não passa de um vira-lata. Um silencioso, taciturno vira-lata.

O prostíbulo abre às três da tarde, avisa uma placa cujas letras embaralham o português e o inglês, numa débil tentativa de atrair clientes. Se pela manhã a solidão envolve o cão, o burburinho da abertura da casa preenche o vazio das tardes. Cadeiras plásticas brancas ficam à entrada. As mulheres — cujas roupas mínimas deixam entrever coxas tatuadas e roliças, pedaços generosos de seios, e uma tentativa desesperada de atrair a sanha de homens famélicos — conversam em alvoroço, fumam sem pressa e desenham no rosto uma felicidade artificial. Às vezes, até me cumprimentam com um leve aceno de mão. Afinal, sou um vizinho que passa todos os dias diante daquela casa de prazeres escancarados nesta rua que abriga, além dos moradores, duas oficinas mecânicas, um pet shop, uma igreja evangélica, uma academia e dois prostíbulos. Aqui, o céu e o inferno convivem em perfeita harmonia.

A menina surge de repente entre as mulheres. Não havia nenhum cliente por perto. A franjinha escorrida na testa e o andar serelepe me remetem à minha filha M. Aparentemente, têm a mesma idade, quase sete anos. Mas são diferentes: M. é magra feito um mosquito; a menina não é gorda, nem magra, mas tem uma robustez visível — coxas grossas e rosto arredondado.

Talvez o cachorro as aproxime, mesmo que uma não saiba da existência da outra. O cão triste não parece ser um animal de estimação, mas, ao ver a menina, levanta os olhos e empina as orelhas. E sacoleja o corpo. Agora, noto que, além de triste, é magro. A menina agarra-se ao seu pescoço numa intimidade acolhedora. Uma mulher (a mãe, talvez), com um cigarro preso aos lábios e um coração tatuado no antebraço direito, diz num grunhido: “M., deixe este vira-lata quieto”. A menina a ignora. Eu, fingindo olhar a obra em frente, acompanho tudo com interesse. A menina e minha filha carregam o mesmo nome.

M. sempre me pede um cachorro. Mas morre de medo deles. Vive no delicado equilíbrio da incerteza. É possível que pense num cachorro diferente dos demais: fofinho, cheiroso, sem latidos ameaçadores, nem patas intranquilas. Ou seja, quase um bichinho de pelúcia. Eu, na minha falta absoluta de tempo para animais, vou protelando, driblando o pedido que, muitas vezes, cai num cômodo esquecimento.

Mas à noite entrego-lhe um cão — ou quase. Está na estante e, antes de dormir, levo-o à cama de M. Na capa, uma menina abraça um cão dos mais simpáticos. Ela, a personagem, quer um cachorro a todo custo. Então, sai em busca do sonhado animal. No entanto, no meio do caminho, no lar para adoções, um homem magro e alto oferece diversos animais: tamanduá, babuíno, serpente, sapo, peixe, lagarto vestido de cachorro, albatroz, canguru e, ao final, Lucinda, uma linda foca. A menina aceita a foca, leva-a para casa e, juntas, brincam na piscina. M. gosta da história, mas sabe que não temos piscina. Em seguida, dorme. Talvez sonhando com um cachorro de verdade.

Há algum tempo, decidi que levarei livros à menina do cão triste. No meu pessimismo pragmático, acredito que ela não tenha nenhum. Ainda estudo a melhor estratégia para conversar com sua mãe. Certamente estranhará um homem magro e um tanto desajeitado às voltas de um prostíbulo a carregar um punhado de livros infantis. Serão os livros de M. para M. — uma troca afetiva entre duas pequenas desconhecidas. Não sei por que sempre penso em dar livros às pessoas, mesmo àquelas que, sabidamente, não são leitoras. Mas uma criança é sempre uma possibilidade à espera de um abraço.

O livro do cachorro (ou da foca) está separado para doação. Releio-o pela milésima vez. Agora, em voz alta. As palavras preenchem a fria tarde de chuva enquanto escrevo. Imagino-me o homem a oferecer múltiplos animais à menina. Sim, talvez eu seja o homem que oferece algo para aquela menina desconhecida. Ou, pelo menos, gostaria de ser. Olho com alegria para a capa: o longo abraço no cachorro envolve todos os sonhos da menina de vestido amarelo e rabo de cavalo. No livro, o cachorro está feliz.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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