À espera do pai

Nunca odiei tanto o pai. Eu o esperava na porta de casa. Ele descia a rua de pedregulhos. Havia pouco tempo deixáramos a roça. Agora, tínhamos de cavar um chão de concreto e asfalto
Ilustração: Fabiano Vianna
02/05/2014

Nunca odiei tanto o pai. Eu o esperava na porta de casa. Ele descia a rua de pedregulhos. Havia pouco tempo deixáramos a roça. Agora, tínhamos de cavar um chão de concreto e asfalto. Trocamos a companhia de bois vagarosos pelo ronco descontrolado de carros e ônibus. Aos poucos, nos acostumaríamos ao ruído da nova vida. Atrás da casa de madeira, construímos nosso estádio — um estropiado Maracanã ladeado por cedros e uma tímida valeta. Nossa rede, as ancas do paiol em cujas vísceras dormiam ratos pançudos. E as ripas para a construção das estufas na floricultura onde morávamos de favor. Éramos retirantes num mundo que nos amedrontava.

O pai carrega o pacote; vem em minha direção. Eu o espero. A ansiedade a pulsar nas vértebras do pescoço. Um nó prestes a estourar no urro do animal ancestral. Ele caminha devagar, como se ambicionasse congelar o tempo, paralisar o momento de entregar ao filho o pão que jamais saciaria a fome que arranhava as costelas delicadas. Te odiei tanto, pai, na tarde sem fim. A mãe ali por perto cuidando das azaleias, avencas e samambaias. Eu já havia anunciado aos amigos. A minha espera era a espera deles. Éramos uma horda de gnus à beira de um rio seco, sem crocodilos. Correríamos em disparada ao nosso estádio de mentira. Seríamos, enfim, pequenos deuses capazes de milagres indecentes. Bastava o pai me estender as mãos grossas, calosas, herança de uma roça obsoleta e indesejada. O pai estendeu-me as mãos. Sobre elas, o pacote. Um simulacro de Papai Noel, cujas vestes tornavam risível a triste silhueta. Toma, filho. Agarrei com todas as minhas forças de nove anos. Davi e Golias trocando carícias e gentilezas. Rasguei o papel de cor indefinida feito o esfomeado a estraçalhar o vestido da amante.

À minha volta, pares de olhos em febre. Enfim, abandonaríamos a bola de plástico emprestada. Teríamos nossa bola: grande, branca, de capotão. Do papel amassado, a desilusão. Uma bola pequena, de cor escura, de borracha, fincava espinhos na palma da minha mão. Gostou, filho? A pergunta do pai se perdeu no silêncio indestrutível. Quietos e resignados, rumamos ao nosso estádio. Eu carregava o ódio debaixo do braço.

A bola pequena e feia — borracha maldita — rapidamente se transformou. Inventamos a bola perfeita. Nosso silêncio virou algazarra. Os gnus ruidosos lambiam o rio caudaloso. Crocodilos não nos assustavam. Inventamos dribles para a bola que pulava uma imensidão. Nossos pés sofriam para dominá-la. Aos poucos, arrefecemos a sua fúria. Driblamos e a chutamos vida afora.

Dói menos odiar o pai quando se está feliz.

Nota
Texto publicado originalmente no site de crônicas Vida Breve.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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