Sofia Soft na pandemia-pandemônio

Que vontade louca de saltar pela janela e desbravar a metrópole, fazer dez vezes (ida e volta) a mesma viagem de metrô
Ilustração: Beatriz Cajé
01/08/2020

Meia-noite. Todas as luzes apagadas. Conversando com minha antiga professora de filosofia, no zapzap, nos ocorreu um bom assunto para uma dissertação de mestrado ou uma tese de doutorado em Estudos Comparados: comparar a jornada do espírito, na Fenomenologia do espírito, de Hegel, com a jornada do herói, em O herói de mil faces, de Joseph Campbell. E decidimos que o melhor lugar pra guardar essa ideia originalíssima seria mesmo o alto mais alto de uma abandonada torre da Terra de Oz ou o fundo mais fundo de uma inóspita caverna da Terra do Nunca. Guardar bem guardado e esquecer pra sempre. Nunca mais pensar nisso. Dissertação ou tese? Hegel, ainda?! Fala sério, ninguém merece…

Tornozeleira eletrônica
Lá fora e aqui dentro. Entre as duas possibilidades, uma janela. Meu habitat é aqui dentro, sempre foi. Sempre foi? Na infância e na adolescência, reconheço que lá fora era tão estimulante quanto aqui dentro. Havia a sombra sufocante da timidez, é certo. Mas ela não era tão opressiva a ponto de me manter em casa o tempo todo. Eu evitava as saídas noturnas, as festinhas e festonas, mas gostava bastante da vida diurna, de pedalar com os amigos. Da piscina e da quadra de basquete, no clube. Também gostava do colégio (não sabia, mas gostava). Naquela época o oxigênio ainda era abundante em toda a parte. Foi mesmo na maturidade que lá fora começou a perder feio para aqui dentro.

Recentemente, escutando um podcast sobre um de meus escritores prediletos, fiquei sabendo que ele sofria de claustrofilia, atração por ambientes fechados. (Agorafobia invertida?) Será essa minha condição? Uma tornozeleira eletrônica invisível? Porque eu olho lá pra fora — adoro olhar lá pra fora, adoro bisbilhotar as pessoas apressadas, principalmente quando não percebem que estão sendo observadas — e fico feliz de estar aqui dentro, em minha concha aconchegante, mais perto dos detalhes internos do que dos externos. Aqui dentro eu tenho todo o oxigênio de que preciso. Lá fora não existe atmosfera, não mais, dificilmente eu conseguiria respirar. E os minutos passam. E as horas passam. E o passado inteiro passa mais rápido lá fora do que aqui dentro, meu presente perpétuo.

O problema é que… De repente, recebemos todos a ordem de ficar em casa. Situação insólita! Que novidade é essa?! Forças superiores, preocupadas com a nossa respiração nacional, com as nossas mãos tão eloquentes, não param de repetir: isolamento social total. Quarentena. Fiquem em casa! Esse comando mexeu magicamente numa chavinha aqui na base da nuca, uma chavinha vermelha que fez clique, mudando pra claustrofobia minha confortável claustrofilia. Esta tornozeleira eletrônica, não, eu não enxergo, mas quero tirar. Que vontade louca de saltar pela janela e desbravar a metrópole, fazer dez vezes (ida e volta) a mesma viagem de metrô, assistir ao show daquela banda de que eu nem gosto muito, virar a noite num botequim insalubre, testemunhar da arquibancada lotada uma final de campeonato.

Quero gente, cadê o enxame de gente? Cadê os abraços, os amassos, os esbarrões, as compressões? Preciso confraternizar num parque ensolarado. Ainda hoje! Entenderam? Preciso entrar numa fila de supermercado. Preciso entrar numa fila de embarque. Viajar pra um congresso. Participar das olimpíadas. Eu e vocês. Precisamos antecipar um réveillon, qualquer réveillon, e também um carnaval, qualquer carnaval. Ainda hoje! O mais tardar amanhã!

Perplexa com meu surto agorafílico, a estante do escritório arremessa um livro em meu cocuruto. Pegou de quina, ui. Eu recupero o livro e logo reconheço a capa. É um velho bom amigo que eu não visito há tempos. Viagem ao redor do meu quarto, de Xavier de Maistre. Recado (nada sutil) entendido. Dos cafundós do século dezoito Xavier me fala novamente como é precioso viajar sem sair de casa. “Meu coração sente uma satisfação inexprimível quando penso no número infinito de infelizes a quem ofereço um recurso certo contra o tédio e um calmante para os males que sofrem.” Na verdade ele fala apenas do seu quarto, mas desconfio que meu apartamento seja do mesmo tamanho, ou um pouco menor. O livrim foi escrito na prisão, durante quarenta e dois dias. Xavier cumpriu pena por participar de um duelo com espadas. Tá bom. Não posso reclamar. Fico feliz de começar uma gloriosa expedição de autodescobrimento aqui dentro mesmo, sem precisar espetar nem ser espetada por ninguém.

Umas meditações-pantufas
O lado bom de qualquer quarentena é que sobra bastante tempo pra gente refletir sobre as mais profundas questões da existência. Tuntum, tuntum. O tempo, por exemplo. Você está percebendo o fluxo volátil da ampulheta, o corpo-fantasma do tempo? Preste atenção em teu isolamento, em teu coração, tuntum, tuntum. O que é o tempo? Uma flecha muito sacana que viaja do passado para o futuro envelhecendo tudo? Tem certeza? Tuntum, tuntum. Pra mim o tempo é uma nuvem psicotrópica que engana nossos sentidos, fazendo a gente acreditar que ele está passando, quando na verdade não está.

Outra questão profunda sobre a qual ando gostando de meditar são as pantufas lápis-lazúlis. Eu tenho um par. Mas ainda não descobri por que estão aqui nem por que essa cor. Nem por que são tão amigáveis. Neste isolamento elas são mais misteriosas do que a própria nuvem-tempo. Aliás, sempre que eu calço minhas pantufas lápis-lazúlis, pra mim fica bem claro que não existe passado, não existe futuro. Só existe o aqui-agora maleável dessa nuvem psicotrópica chamada “atmosfera”, que a gente não para de respirar. Tão maleável e tão aqui-agora que eu já não sei com certeza quanto tempo faz que não ponho os pés num par de tênis fora de casa. Me ajuda, memória. Faz exatamente… Perdi a conta no começo da quarta semana, quando parei de fazer risquinhos-de-presidiário na parede ao lado da cama. Mas posso dizer com segurança que minha sanidade física e mental ainda não sofreu qualquer arranhão. Até aqui tá tuuuuuudo beeem.

Ontem e anteontem eu passei o dia de pijama. Hoje também. (Mas “ontem” e “anteontem” também são “hoje”, certo? Veja, ainda estou calçando as pantufas lápis-lazúlis… Deixa pra lá.) Será que este pijama estampado também é eterno e psicotrópico? Já não me lembro se um dia usei outra roupa, se realmente não nasci dentro deste traje tão compreensível, que me entende e aceita do jeitinho que eu sou. Moletom é pros fracos! Meu pijama estampado é meu palácio e nada me faltará. Às vezes brigamos, não vou mentir. Exceto por esse detalhe, até aqui tá tuuuuuudo beeem.

Aliás, aqui está outro tema muito apropriado numa quarentena: o taedium vitae. Para minhas pantufas e meu pijama, tempo e tédio são duas noções entrelaçadas. Não existe tédio sem tempo, não existe tempo sem tédio. Contra o tédio, bolei um plano. Cansei dos filmes e das séries, e comecei a baixar das estantes todos os livros que eu ainda não li. É hora de recuperar o precioso tempo (pedacinhos cintilantes deste hoje infinito) perdido com as fúteis distrações audiovisuais.

Estabeleci um método de leitura deveras proveitoso, um regime de atleta campeão. Se o livro é antipático e eu não suporto sua presença demorada, leio apenas uma página por dia. Se o livro é simpático e eu não quero que ele acabe logo, leio apenas uma página por dia. Desse modo já estou lento, quero dizer, já estou lindo, não é isso, já estou lendo cento e sessenta e cinco livros paralelamente, ao ritmo de uma página por dia cada um. Meu objetivo é ler no mínimo trezentas obras paralelamente, talvez quatrocentas. Por isso continuo baixando livros. Simpáticos e antipáticos, tagarelas e acanhados. Às vezes brigamos, não vou mentir. Exceto por esse detalhe, até aqui tá tuuuuuudo beeem.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho