Tiros no escuro

Há um desassossego perpétuo, um conflito constante entre luz e sombra
Ilustração: Teo Adorno
30/12/2019

A arte e a literatura barrocas expressam a desarmonia das coisas, os excessos do humano e a instabilidade ontológica do universo. Há um desassossego perpétuo, um conflito constante entre luz e sombra. Tudo, especialmente as ferramentas da linguagem, é exagerado, efêmero, estranho, irregular… A elegância se perde na deselegância, o equilíbrio se perde no desequilíbrio. A literatura de Carlos Emílio C. Lima, por exemplo. Basta ler uma única página de qualquer das suas caudalosas obras pra gente perceber que o estilo dominante é mesmo o barroco. E talvez essa seja a razão de os livros desse autor não frequentarem a grande conversação da literatura brasileira. Restritos a uma apreciação mínima, esses livros raramente são lidos e citados pelos nossos especialistas. Menos ainda pela imensa comunidade de leitores. A excentricidade não domesticada, sempre louca, às vezes suja, fedida, mal-educada mesmo, da prosa de Carlos Emílio, parece impacientar o bom gosto de natureza clássica (barroco e classicismo jamais se deram bem) do público brasuca. Carlos Emílio, o maluco, o selvagem, dificilmente será convidado para o beletrista banquete de nossas Letras tão solenes e distintas. (Nesse ponto o filho de Fortaleza está em boníssima companhia: seu amigo Uilcon Pereira, outro maluco-beleza, também jamais foi convidado pra esse repasto de bois mansos. Fausto Fawcett e seu orgônico futurismo delirante também não. Vicente Franz Cecim e sua onírica literatura fantasma idem. Flávio Viegas Amoreira e seu erudito dialogismo oceânico idem.) Carlos Emílio é barroco na linguagem e no enredo. E na vida, certamente. Desconfio até que ele habita uma zona de perpétua transição de fase, um mapa não-euclidiano e não-cartesiano, multidimensional, conectado a todos os espaços-tempos possíveis. Sua prosa banha-se no oceano da ficção fantástica — também chamada de realismo mágico — e no oceano da ficção científica, sob o sol onipresente da fantasia mais delirante. Braulio Tavares definiu bem: essa prosa torrencial é um caleidoscópio psicodélico. Trabalho difícil foi escolher um conto — apenas um — do Carlos Emílio, para a antologia de contos do realismo mágico brasuca, que estou organizando. Somente a coletânea O romance que explodiu, de 2006, oferece cinquenta e três ficções breves, das quais ao menos dez são fortes candidatas a ingressar na antologia: Peregrinação, Labor do Éden, Graal, A busca, Em busca de Wuêé, Numrionum, Reorientação para as abelhas, Luvibórix, A pedra Knalp e Ofos. Seu primeiro livro de contos, Ofos, de 1984, oferece trinta e duas narrativas, a maior parte delas bem curta. Minhas prediletas: Os idiotas do sol, Pedrofídio, Glossolalia, O maracatu dourado e A direção do vento. A pulsão barroca desarticula tudo o que seus tentáculos tocam, então não é de se espantar que até mesmo os romances de Carlos Emílio não sejam organizados da maneira tradicional. Os visitantes, O cavalo do sol e Hohehum, três capítulos do romance Pedaços da história mais longe, de 1997, poderiam figurar tranquilamente numa antologia de contos do realismo mágico brasuca. Os capítulos A tataravó das turbinas, A velha cosmonauta negra e No Oxímbalo: cosmogonia do próximo universo, do romance Maria do Monte, de 2008, também são contos fantásticos excelentes. Depois de muito ponderar, escolhi o conto Graal, sobre dois indivíduos que se encontram num espaço urbano imaginário e começam a conversar a respeito das questões mais insólitas. É um longo diálogo, e esse foi o critério de desempate. Tenho certeza de que a antologia terá muitos contos narrados em primeira ou em terceira pessoa, então escolhi, de Carlos Emílio, um conto articulado por um narrador dramatúrgico, mais raro em nossa literatura.

Deepfakes
O que é um rosto? A quem pertence o uso de um rosto, à pessoa ou à sociedade? De quantas maneiras um rosto pode ser roubado e modificado? Onde eu posso comprar os melhores rostos das melhores grifes? Quem tem cem rostos não tem rosto algum? Essas perguntas jamais eram feitas, antes das deepfakes. A tecnologia transforma tudo o que é natural e consensual primeiro num grande problema filosófico, depois numa violenta mudança cultural, política e econômica.

Cinema-arte e cinema-artesanato
Martin Scorsese: “Os filmes da Marvel não são cinema”.
Primeiro equívoco: faltou definir o que é cinema.
Se pra você cinema for “o conjunto de princípios, processos e técnicas utilizados para captar e projetar numa tela imagens estáticas sequenciais (fotogramas) obtidas com uma câmera especial, dando impressão ao espectador de estarem em movimento” (Houaiss), é óbvio que os filmes da Marvel são cinema.
Mas se pra você cinema for “a arte cinematográfica”, é óbvio que os filmes da Marvel não são cinema. Eles não são arte, eles são artesanato.
Cinema-arte (maior taxa de novidade estética do que de redundância) é O encouraçado Potemkin, Morangos silvestres, La dolce vita, Trono manchado de sangue, Teorema, Terra em transe, O Bandido da Luz Vermelha, Stalker, Amnésia, Anticristo
Cinema-artesanato (maior taxa de redundância do que de novidade estética) é Star wars, Avatar, Cidade de Deus, A viagem de Chihiro, O labirinto do fauno, Capitão América, A invenção de Hugo Cabret, Divertida mente, Jurassic World, Mad Max: estrada da fúria
Nesse caso, surge uma segunda falácia na afirmação de Scorsese: considerar que o cinema-arte é superior ao cinema-artesanato.
Não é, fofinho.
As duas famílias são igualmente legítimas e necessárias. São campos de força que se completam. Obras-primas, obras medianas e obras medíocres existem em ambas.
Besteira é ficar misturando alhos com bugalhos.

Alegoria é para os fracos
A ficção fantástica é para os fortes. Apenas para os fortes.
Tem que ter músculos emocionais pra aguentar a porrada que a grande ficção fantástica sempre dá.
Enquanto isso, os fracotes…
A maldição que aflige a ficção fantástica é virar alegoria na cabeça do leitor e do crítico fracos.
Para o leitor e para o crítico fracos qualquer sustinho, no desvio insólito do velho realismo-naturalismo, vira alegoria política, apenas alegoria política.
Saibam, ó meus irmãos, que a ficção fantástica não é apenas alegoria, não é apenas sentido figurado.
Ela é primeiramente sentido literal.
Se o fulano acorda metamorfoseado num inseto, isso aconteceu mesmo, não é somente uma representação metafórica do capitalismo opressor.
Se beltrano acorda transformado em mulher, isso aconteceu mesmo, não é somente uma representação metafórica da guerra dos sexos.
Se sicrana menstrua flores vermelhas, isso é um fato real. Estranho, sim, mas verdadeiro.
Se os vivos convivem com os mortos numa cidadezinha interiorana, isso também é um fato real. Bizarro, sim, mas verdadeiro.
Todos esses eventos fantásticos são primeiramente um aviso de que no mundo real há certos fenômenos inexplicáveis pela lógica e pela ciência, fenômenos inquietantes que subvertem de verdade as leis da física, da química, da biologia etc.
Deixem pra outra hora a leitura de viés político, sociológico e psicanalítico. Parem com essa ênfase irritante apenas no famigerado sentido figurado.
E avisem vossos fracos professores, plis.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho