Receita de literatura

Uma nova forma de escrever, em que tudo não é o que parece e o surrealismo dá novo sentido a personagens, palavras e ao universo literário
Ilustração: Thiago Lucas
01/04/2022

Primeiro, traçar com as palavras iniciais uma grossa linha horizontal. Um vinco profundo. Separar o alto do baixo. O som do silêncio. No hemisfério superior escrever: todas as estrelas. No hemisfério inferior escrever: todos os peixes. Mas sempre permitir que estrelas e peixes se misturem quando quiserem. O conceito de separação é um engano estúpido. Não existem reinos isolados ou fronteiras rígidas. Na trama do idioma tudo é mistura. Tudo é expressão termodinâmica.

Em seguida, traçar com novas palavras uma grossa linha vertical. Outro vinco profundo. No hemisfério oriental separar o dia da noite. A razão do delírio. (Não esqueçam: o conceito de separação é um engano estúpido.) No hemisfério ocidental separar o ódio do amor. A mentira da verdade. Assoviar qualquer coisa excitante. Ensaiar uns passos de street dance. Os movimentos não precisam ser definidos, qualquer movimento dançarino sabe definir a si mesmo naturalmente. Apontar pro alto, criar o sol e a lua. Empolgar-se. Shazam, rataplam! Criar três sóis e uma dúzia de luas.
Gatos.
[Não os animais, mas a palavra gatos.]
São fundamentais em qualquer universo literário.
Persas piadistas.
Ragdolls fleumáticos.
Siameses vapt-vupt.
Siberianos bipolares.
Angorás zen-budistas.
Sphynxs poliglotas.
De todas as raças, em todos os lugares.
Invencíveis.
Em seguida, as crianças. De todas as idades.
[Não as de carne e osso, mas a palavra crianças.]

Finalmente libertar as crianças. Acarinhar as crianças. Os gatos e as crianças. Expandir os limites do pega-pega, das bolhas de sabão. Contar até vinte em tupi-guarani. Arriba arriba! Ándale ándale! Correr. Se esconder. Deitar na grama. Rolar morro abaixo. Existe uma história em cada talo de grama e todas essas histórias precisam ser recuperadas. Que tipo de história? Do tipo vegetal, obviamente (a palavra vegetal), mas também do tipo mineral (a palavra mineral). Vez ou outra do tipo animal (a palavra animal). São delicadas histórias quase pré-históricas. Todas muito pacíficas, cheias de pétalas e pólen. Sem maremotos ou avalanches, sem vulcões ou terremotos. Histórias meio preguiçosas, pra acalentar gatos. E crianças molengas, cansadas de brincar.

Definidos os pressupostos, impressas as premissas, qual seria o próximo passo — o compasso seguinte?

Escrever-desdobrar o princípio de uma narrativa. Em prosa cheirosa ou verso disperso. Configurar uma semente. Pontuar-plantar no húmus um monólogo-fluxo e contemplar sua germinação. Quem está cantando? Tanto faz. Don’t stop the music. Ter sempre alguém cantando é mais importante do que saber quem está cantando. Ter sempre alguém cantando é mais importante do que saber que maravilhosa canção é essa. Yabadabadoo! Antes que os personagens finalmente cheguem, deixar penetrar as raízes da digressão. Cada vez mais fundo, triturando os torrões da primavera amarela. Assim passarão dez mil anos. Don’t stop the music. Expandir o micélio, as conexões fúngicas. Misturar a mistura — mais ainda.

Misturar cores, sabores & odores.
Confundir as fronteiras, reclassificar as figuras de linguagem.
Em seguida, trazer pra cena os adoráveis atores, começar a formatar sua consciência.
Quem protagonizará os romances, os contos e os poemas?
Certamente a pedra.
Não uma pedra qualquer, mas a palavra pedra. Violenta, orgulhosa, impulsiva, obviamente de Áries.
Ou então a árvore.
Não uma árvore qualquer, mas a palavra árvore. Emotiva, maternal, vingativa, obviamente de Câncer.
Ou então o cavalo.
Não um cavalo qualquer, mas a palavra cavalo. Teimosa, ranzinza, perfeccionista, obviamente de Escorpião.
Ou então o cometa.
Não um cometa qualquer, mas a palavra cometa. Romântica, charmosa, sonhadora, certamente de Peixes.
Resumindo: protagonizará qualquer personagem-palavra que não evoque o universo humano, porque dos grosseiros, arrogantes, ignorantes & vaidosos humanos a literatura já está saturada.
Em seguida, adicionar a ação.

Promover o movimento. O conflito. Mover as peças no tabuleiro. Reinventar a morfologia da narrativa fantástica. Afinal todas as narrativas são fantásticas. Subverter o tempo. Subverter o espaço. Reorganizar os órgãos vitais da palavra pedra. Da palavra árvore. Esticar a geometria cubista da palavra cavalo. Da palavra cometa. Contemplar a coluna vertebral da existência vocabular: o que desejam a Pedra e o Cavalo, qual é sua mais forte motivação? O que planejam a Árvore e o Cometa: matrimônio ou guerra religiosa? Tanto faz, desde que o sorriso seja a crença fundamental. Não adianta nada andar de cara amarrada. Viver dez séculos de cara amarrada é perda de tempo. Somente o sorriso é revolucionário. Somente o sorriso é capaz de mudar a temperatura e as cores da realidade.

Primeiro capítulo ou, se preferirem, primeira estrofe: a Pedra e o Cometa correm desajeitadamente, batem as asas e levantam voo. Ride, ridentes! Derride, derridentes! É preciso entusiasmo. É preciso um deus interior, pra alguém conseguir correr e vencer a Gravidade. Porque Gravidade não há. Asas não existem. Tudo não passa de linguagem. De pensamento mágico… Somnium.

Segunda estrofe ou, se preferir, segundo capítulo: a Árvore e o Cavalo cantam e dançam, invocando a glossolalia da Chuva. Todos cultivam o esperanto e a esperanças mais triviais. ¡Para bailar la bamba! ¡Bambaaa, bambaaa! É preciso entusiasmo. É preciso um deus interior, pra alguém conseguir invocar a glossolalia da Chuva. Porque Chuva não há, nunca houve. Esperanto e esperanças não existem, nunca existiram. Tudo não passa de pensamento mágico. De linguagem.

Nos capítulos seguintes — ou nas estrofes seguintes, se preferirem — as linhas & entrelinhas se misturam mais ainda. Fronteiras bem definidas? Nananinanão. As intenções olfativas da Pedra penetram as intenções gustativas da Árvore que penetram as intenções auditivas do Cavalo que penetram as intenções visuais do Cometa que penetram as intenções táteis da Pedra, numa irreverente ciranda sensorial.

Uma ciranda solar-lunar.
Gatos e Crianças — nova composição.
Uns Gatos misturados numa Criança incandescente, umas Crianças misturadas num Gato eletroacústico.
Plunct Plact Zuuum
pode partir sem problema algum!
Protagonistas versus antagonistas.
Glossários secundários & figurantes.
Sobre o que conversam?

O vocabulário científico conversa certamente sobre as complexas micro & macropropriedades químicas-físicas-biológicas dos idiomas.

O vocabulário político conversa certamente sobre os perenes conflitos sociais & sexuais que jogam, por exemplo, os substantivos-adjetivos contra os verbos-advérbios.

O vocabulário religioso conversa certamente sobre a dupla natureza — ao mesmo tempo provisória & permanente — de todas as linguagens, até mesmo das linguagens mortas e daquelas que ainda nascerão.

O vocabulário artístico canibaliza todas essas conversas, às vezes tagarelando pausas e silêncios, outras vezes cantarolando e gargalhando de boca cheia — perdigotos… que deselegância! —, sempre propondo novos diálogos & novas formas de dialogar, de mastigar subversões, de ferir mais um pouquinho as feridas narcísicas.

Somnium … Personagens não dormem. Jamais! Às vezes fazem que estão dormindo. Aparentam. Mas é puro fingimento. Personagens não dormem. Mas sonham. Sempre sonham. Na verdade, seus órgãos vitais não conhecem outra condição metabólica.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho