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Entre pessoas normais, personagens, heróis em suas jornadas, narradores oniscientes e protagonistas, há uma entidade suprema: o Autor
Ilustração: Aline Daka
01/03/2022

Certa manhã de domingo, uma estranha vestindo uma fantasia de Mulher-Maravilha saiu da multidão, encostou em meu balcão e foi longo disparando:

Primeiro você precisa entender que, no campo das artes e da literatura, qualquer carreira acadêmica é inimiga da criação estética absoluta.

O que isso significa? Por que está me dizendo isso? Afinal, quem é você?

Até hoje ninguém que obteve algum sucesso no domesticado labirinto acadêmico conseguiu criar paralelamente obras de arte ou literárias verdadeiramente plenas e vigorosas.

Não sou acadêmico. Não sou artista nem escritor. Afinal, quem é você?

Pergunte-me por quê.

Por que o quê?

Pergunte-me por que até hoje ninguém que teve algum sucesso no labirinto acadêmico conseguiu criar paralelamente obras de arte ou literárias verdadeiramente plenas e vigorosas.

Por quê?

Por que a vida acadêmica, mesmo a mais rotineira e confortável, rouba tempo e energia do artista e do escritor. Tempo e energia fundamentais no momento final da criação artística e literária, para o último impulso, o furor selvagem, exatamente aquele que definirá a obra-prima. Além disso, a vida acadêmica cria certas inibições mentais, certos pudores corporativos que impedem o artista e o escritor de exercitar a verdadeira e irrestrita liberdade criativa.

Eu já disse: não sou acadêmico, não sou artista nem escritor. Eu sou apenas um personagem numa obra de ficção. Aliás, você também! Puta merda! Inibições mentais, pudores corporativos? Por que está me dizendo tudo isso?! Você representa o Autor, é seu porta-voz? Ele não tem coragem de falar tudo isso ele mesmo, sem intermediários? Canalhas, covardes, vocês dois!

Parabéns. Agora você conhece a Verdade Absoluta em sua totalidade.

O quê?

Nesse momento, sem sequer se despedir, a maluca me deu as costas, entrou na multidão e desapareceu.

Mas sua presença-ausência continuou me assombrando um pouquinho, dando tapões em minhas orelhas. Desde então eu não parei mais de enxergar as malditas linhas de texto. Sempre as malditas linhas de texto. Finíssimas, quando estou distraído.

Na maior parte do tempo, grossas, grossíssimas. De circunstância.

Fleumáticas. Ondulantes. Às vezes tolas e sulfurosas, fora de prumo. Sem sabor definido.

Pura fagulha policromática. Puro blablablá.

***

Creio que foi numa sexta-feira treze.

Ou pode ter sido no solstício de inverno.

O shopping estava particularmente lotado. Superlotado. Barulho de vontades e angústias sendo arrastadas. Eram narradores-em-primeira-pessoa. Dezenas. De todos os tipos. Excitadíssimos. Misturados com dezenas de narradores-em-terceira-pessoa. Também de todos os tipos. Também excitadíssimos. E uns poucos narradores-em-segunda-pessoa, sempre mais raros. Também excitadíssimos. Feéricos. Esfregavam-se uns nos outros. Saracoteavam e tagarelavam. Não pareciam preocupados com a escassez de narrativas. Agiam como se não faltasse trabalho. Será que ninguém mais está ciente de que todas as narrativas implodiram?

Um Narrador Em Primeira Pessoa Protagonista gritou num megafone: a jornada do herói, queremos a jornada do herói. Um Narrador Em Terceira Pessoa Onisciente Discreto Ou Neutro respondeu em outro megafone: não há mais heróis, não há mais heroicas jornadas. Esbaforido, enlouquecido pelo desejo, um Narrador Em Primeira Pessoa Coadjuvante rodopiou pra cima de um Narrador Em Terceira Pessoa Onisciente Intruso Ou Intrometido. Interpenetraram corpos, bem perto de mim. Imaginavam estar participando de um vídeo sadomasoquista, talvez…

Ondas. Ondas-palhaças. O empurra-empurra ganhou força. Agora a massa de narradores movimentava-se com fascinante violência. Bombas de efeito moral. Ataque da brigada ligeira e contra-ataque da sétima cavalaria. Fui atropelado por uma horda de Narradores Dramatúrgicos que tentava resistir a uma farândola de Narradores-montagem. Ondas. Ondas-arquétipos. Show pirotécnico. Esquadrilha da fumaça. Batalha naval. Narradores Em Segunda Pessoa chupavam e mastigavam o corpo sem corpo dos Narradores Em Terceira Pessoa Onisciente Polifônico Ou Em Transe. Muito groove. Muito swing. Uma orquestra invisível tocava um tangolomango irado, quase um funk psicodélico.

Outro Narrador Em Primeira Pessoa Protagonista gritou num megafone: a jornada do herói, queremos a jornada do herói. Outro Narrador Em Terceira Pessoa Onisciente Discreto Ou Neutro respondeu em outro megafone: não há mais heróis, não há mais heroicas jornadas.

A dissolução total de todas as ilusões ocorreu nesse momento, com tamanha força que eu quase perdi a consciência. O que antes eram meus cinco sentidos se converteram no quê? Na racionalização linguística de meus cinco sentidos! O mesmo aconteceu com minhas outras percepções neurológicas. Minhas ações e reações, meu corpo inteiro e todo o ambiente externo, as horas e os dias, os metros e os quilômetros, absolutamente tudo passou a ser um conjunto de ideias verbais. Absolutamente tudo passou a ser texto.

***

No alto, a insidiosa voz do Autor trovejou:
• Eu.
• EU!
• Não importa o que afirma a ciência, o centro do universo sou eu. Tudo está distribuído ao meu redor: galáxias, planetas, oceanos, montanhas, pessoas, o sol e a lua…
• Não importa o que afirma a ciência, o universo tem exatamente a minha idade. Antes de eu nascer não havia nada, após a minha morte não haverá nada.
• Só existirá cosmos enquanto eu estiver aqui, comigo mesmo.
• Vivo, sou permanente e infinito.
• A entidade que eu conheço melhor sou eu mesmo, porque minha história pessoal é a narrativa que eu conheço de maneira mais detalhada.
• Esse será sempre o ponto de partida mais eficaz de qualquer aventura do conhecimento.
• Estou aqui.
• Sempre estive aqui, comigo mesmo.
• Repito: vivo, sou permanente e infinito. O centro do universo.
• Todas as outras pessoas são, em graus diferentes, entidades mais ou menos transitórias, mais ou menos desconhecidas.
• Estou me referindo primeiro ao pequeno conjunto das pessoas mais próximas, que moram comigo há muito tempo. Em seguida vem o conjunto das pessoas ligadas a mim por algum grau de parentesco ou de amizade. Por fim, vem o conjunto gigantesco de todas as pessoas menos presentes em minha vida, que eu encontro no meu dia a dia.
• Obviamente, não estou me referindo a nenhuma pessoa que eu jamais encontrei em momento algum, que nunca pertenceu a um dos três conjuntos assinalados. Não estou me referindo às celebridades do cinema e da televisão, por exemplo. Nem às figuras públicas que eu conheço apenas dos noticiários.
• Essas não são pessoas, mas simulações de pessoas. São fantasmas. Pertencem ao conjunto das entidades alegóricas.
• Eu me escuto e me entendo — até mesmo minhas abstrações mais abstratas — na velocidade do pensamento. Essa amplitude não existe fora de mim. As entidades transitórias e as entidades alegóricas são lentas e fragmentadas. Em geral, confusas ou dissimuladas.
• Antes que me acusem de solipsismo, vou logo dizendo: bullshit. Sei perfeitamente que tudo o que existe fora de minha mente é real, existe de verdade, não é uma criação de uma fantasia aloprada. Mas você, Leitor, e todas as outras pessoas, mesmo existindo de verdade, ainda assim são entidades incompletas, malformadas, amputadas, cheias de ruídos físicos e comportamentais.
• Por isso são tão perigosas. Podem me ferir de muitas maneiras suaves ou selvagens.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho