Paradigma 18

Só é possível dissertar sobre a utopia quando não estamos embriagados de utopia
Ilustração: Teo Adorno
30/03/2019

Lançada no dia 18 de dezembro de 2018, a cartilha Paradigma 18 determina que:

1. O realismo literário deve ser banido, o princípio da mimese aristotélica precisa ser expulso, a representação da chamada vida real não interessa, a força hegemônica da narrativa não deve ser a realidade empírica, seja ela psicológica ou sociopolítica.

2. O enredo deve ser mirabolante, a causalidade do mundo cartesiano precisa ser abolida a favor da causalidade insólita, por vezes delirante, do mundo dos mitos e dos sonhos.

3. Tempo e espaço devem ser realidades mágicas, fantásticas, que desrespeitem as leis da física newtoniana.

4. Protagonistas homens-brancos-heteros estão terminantemente proibidos. O protagonista deve ser alguém raramente escalado, na ficção brasileira, para o papel principal. Alguém ou alguma coisa. Personagens bizarros do folclore brasileiro também merecem protagonizar a narrativa, ou receber muito destaque na trama.

5. Substantivos abstratos e ideias conceituais devem ganhar o mesmo estatuto de personagens conscientes, tendo obrigatoriamente uma presença física — um corpo mineral, vegetal, animal ou mitológico — e uma participação efetiva na trama.

6. Os personagens devem saber que estão num texto, e sabendo que seu mundo é puramente ficcional esses personagens devem comentar, satirizar, questionar, criticar essa condição e as escolhas do escritor empírico.

7. Também precisam comentar, satirizar, questionar, criticar a confortável posição do leitor empírico.

8. Edições distintas da narrativa devem apresentar versões distintas do texto, de maneira que jamais haja duas edições idênticas.

9. A rapsódia Macunaíma, de Mário de Andrade, publicada em 1928, é a primeira grande referência a inspirar esta cartilha Paradigma 18.

Voltamos agora à nossa programação normal.

Uma utopia triste?
Da mesma maneira que só é possível dissertar sobre a felicidade quando não estamos embriagados de felicidade, só é possível dissertar sobre a utopia quando não estamos embriagados de utopia.

A felicidade é um fluxo fugaz. Quem está feliz não tem consciência de que está feliz, pois a consciência de algo exige racionalização. E a felicidade — tanto quanto o orgasmo — é pura sensação, uma experiência avessa a qualquer tipo de racionalização. Que só será possível mais tarde, quando o breve orgasmo da felicidade já começar a se dissipar.

A utopia erótica pensada por André Carneiro, apresentada em vários contos mas detalhada principalmente nos romances Piscina livre (1980) e Amorquia (1991), produz uma desconforto fascinante em nós que nunca tivemos a oportunidade de viver numa utopia. O desconforto de saber que a felicidade social e individual só será possível numa sociedade sem liberdade.

A utopia erótica pensada por André Carneiro só se mantém no prumo porque dispõe de eficientes mecanismos de controle social, aperfeiçoados com a ajuda de uma entidade todo-poderosa chamada Computador Central, substituta tecnológica do nosso enigmático Deus, mas igualmente enigmática.

Em Piscina livre e Amorquia temos uma sociedade hedonista que vive intensamente sua sexualidade exuberante, sem qualquer restrição moral ou religiosa. Boa parte da alta tecnologia foi desenvolvida pra atender os protocolos do poliamor e do pansexualismo. Os tabus sexuais de nossa sociedade foram abolidos, são coisa do passado, de gente infeliz e ignorante.

Não há qualquer impedimento afetivo ou jurídico: todos fazem amor com todos, porque aprenderam muito cedo que o desejo só não degenera quando é totalmente livre. Essa é a suprema felicidade social: o fim do casamento e da tradição monogâmica.

Crianças e adolescentes aprendem na escola as técnicas mais sutis do amor físico. A arte e a religião louvam a beleza estética e esotérica da cópula. Em Piscina livre, para o uso exclusivo principalmente das mulheres foram criados os atenciosos androides sexuais, que dominam todas as técnicas da sedução e do prazer. Em Amorquia, a morte é um fenômeno quase desconhecido, a pessoas vivem indefinidamente — apenas para os jogos sexuais.

É bom lembrar que não estamos falando de romances eróticos ou pornográficos, porque não há nada de libertino ou lascivo nessas narrativas futuristas. Onde não há interdição jamais haverá devassidão. A luxúria muito bem administrada dos personagens não ultrapassa os limites do mundo ficcional. São romances filosóficos, que propõem uma reflexão refinada e objetiva, livre de (nossos) preconceitos.

André Carneiro propõe que a humanidade só encontrará a sanidade física e mental quando deixar de combater o mais potente de todos os impulsos biológicos. Porém o autor introduz em sua fórmula da felicidade um elemento inaceitável pra qualquer defensor da democracia liberal e das liberdades civis: o Computador Central, uma entidade paternalista, onisciente e onipresente, que administra cada detalhe da utopia.

Qual sociedade é a melhor: a utopia erótica, caracterizada pelo bem-estar social e individual numa sociedade sem liberdade, ou a nossa, caracterizada pelo mal-estar social e individual numa sociedade com algumas liberdades? Essa é a grande questão apresentada pelos dois romances. Questão complexa, que os apressadinhos tratam de responder apressadamente, sem muita reflexão.

Os apressadinhos rapidamente consideram uma sociedade pautada pela felicidade-sem-liberdade uma distopia. Ou, na melhor das hipóteses, uma utopia triste. É o que dizem há décadas, por exemplo, da sociedade de castas bem-adaptadas e felizes apresentada no romance Admirável mundo novo, de Aldous Huxley.

Nossa sociedade fracassou e continua fracassando ao lidar com nossos apetites e nossos demônios íntimos. Basta ver a quantidade absurda de psicopatas e sociopatas, tribunais e prisões, massacres locais e guerras mundiais. Mesmo assim, os apressadinhos rapidamente condenam, nas utopias futuras, a liberdade sexual e o uso de drogas perfeitas — soma (Admirável mundo novo) e mep-14 (Piscina livre) — que anulam a tristeza e a depressão, sem qualquer efeito colateral.

Pois saibam que se pudesse escolher, eu preferiria mil vezes ser um ípsilon bem adaptado e feliz, vivendo entre ípsilons bem adaptados e felizes, num Estado Mundial futuro, do que continuar sendo um (escritor) brasileiro mal adaptado e infeliz, vivendo entre (escritores) brasileiros mal adaptados e infelizes, com algumas poucas liberdades civis. Toda a corja política que vem nos governando desde as capitanias hereditárias não vale dez por cento do Computador Central.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho