Os asilados de Ruth Bueno

“Asilo nas torres”, lançado em 1979, merecia um destino melhor do que o simples esquecimento
Ilustração: Teo Adorno
30/03/2020

São três torres. Semelhantes, mas de diferentes alturas. A mais alta sobe ao infinito, ninguém consegue enxergar seu topo mergulhado nas nuvens.

Essas três torres frias centralizam o trabalho burocrático de uma vasta região, talvez do planeta inteiro, que é Saturno, mas não o Saturno que conhecemos do relato dos astrônomos, trata-se de outro Saturno, certamente muito parecido com a Terra.

Em torno das torres brancas e frias há um descampado branco, de um lado, e uma cidade, do outro. Entre as torres há três jardins de iúcas (planta arbustiva de flores brancas), única planta permitida no local. O centro da narrativa é a rotina modorrenta de funcionários insignificantes: os indolentes, os estúpidos, os oportunistas, os cafajestes, os sádicos, os indiferentes e uns poucos bem-intencionados… No topo dessa pirâmide de trabalho, acima da mais alta cúpula de bajuladores, está o distante e intocável Rei.

Funcionários de segunda classe são os asilados, que não têm qualquer liberdade, quaisquer direitos. Vivem e morrem nas torres e para as torres, no mais desconfortável frio artificial, pois as máquinas exigem baixas temperaturas. Os capítulos do romance são curtíssimos, a linguagem move-me com naturalidade do registro mais cru e referencial ao mais lírico e subjetivo. O nome de todos os personagens é apenas uma inicial kafkiana: H, L, N, R, U etc.

Apenas duas personagens femininas ganharam um nome menos sintético: a solitária Assunta, sempre intrigada com os mistérios que cercam as torres, e a poderosa Salomé, feiticeira de muitos maridos, senhora dos ventos, das harpias e das salamandras. Ambas tingem a narrativa com as cores não domesticadas do estranho e do fantástico típicos do realismo mágico. Correção: três personagens femininas. Há também a pobre-coitada Maria Leque, abusada por todos os homens, cuja história é contada num momento minicapítulo.

Asilo nas torres, terceiro romance de Ruth Bueno, lançado em 1979, merecia um destino melhor do que o simples esquecimento. Essa ficção fantástica sobre as misérias do funcionalismo público saiu na preciosa coleção de Autores Brasileiros, dirigida por Jiro Takahashi para a editora Ática, e teve uma nova edição pelo Círculo do Livro, antes de desaparecer de vista.

Asilo nas torres é mais um título adquirido na Estante Virtual, pra minha coleção de melhores romances injustamente esquecidos do século 20.

As incertezas do real
Relendo trechos da peça A vida de Galileu, de Bertolt Brecht, percebo, consternado, que até mesmo a ciência mais hard depende bastante de uma boa dose de fé das pessoas comuns e também das incomuns. Mas isso é algo que Richard Rorty já havia confirmado em seu incontornável ensaio sobre Contingência, ironia e solidariedade.

O telescópio do astrônomo florentino revela aos teólogos uma realidade muito diferente da realidade defendida por Ptolomeu e pela Igreja Católica. Mas a dúvida dos teólogos é: quem garante que o telescópio não é um instrumento do demônio, criado pra iludir e desvirtuar a visão dos homens de bem? Por que acreditar em nossos olhos, se eles podem estar sendo enganados por uma falsificação da abóbada celeste, no interior do telescópio?

Galileu sabe que contra essas afirmações disfarçadas de dúvidas não há uma resposta invencível. O método científico consegue provar as coisas que existem, mas não consegue provar a inexistência de certas coisas intangíveis, seja o demônio ilusionista dos católicos, seja o bule de chá celestial de Bertrand Russell, ou o unicórnio cor-de-rosa invisível, ou o monstro de espaguete voador…

É preciso ter fé no telescópio. Do mesmo modo que é preciso ter fé na existência do átomo e do genoma, na ação positiva das vacinas e na eficiência do acelerador de partículas. Afinal, como ter certeza de que tudo isso não faz parte de um grande pacote de falácias criado por um Mister Satan deveras ardiloso, que a esta hora está rindo muito de nossa ingênua credulidade?

O mais bacana é que Brecht deixa espaço em sua peça para essa dilacerante dúvida ontológica. Basta ler com atenção.

Gênio.

No final das contas, meus sobrinhos e minhas sobrinhas, os famigerados Brecht, Rorty e Cia. garantem que somos movidos mais pelos afetos do que pela razão quando escolhemos acreditar em certos fatos e não em outros, dentro e fora do círculo da ciência.

Geração dez
Eu não queria que 2020 chegasse tão cedo. Simplesmente não queria. Lembro que no final de 2011 a tranquila certeza de que 2020 estava a quase uma década de distância era mais saborosa e confortável do que uma caldereta de Colorado Vixnu a sete graus. Eu olhava pra frente e via centenas de obstáculos atrasando a corrida dos meses e dos anos. Mas esse longo período de tempo passou rápido. Rápido demais. Eu cochilei e o calendário acelerou somente pra me aporrinhar.

Em 2001 lançamos a antologia Geração 90: manuscritos de computador, organizada no ano anterior, seguida de Geração 90: os transgressores” Em 2011 lançamos a antologia Geração zero zero: fricções em rede, organizada no ano anterior. Agora chegou a hora de começar a organizar a antologia Geração dez: utópicos e distópicos.

A boa má notícia é que o número de autores que estrearam na ficção a partir de janeiro de 2011 (o prazo vai até dezembro de 2020) é assustadoramente maior do que o número de autores que estrearam nas décadas anteriores. Repito: essa uma boa notícia que também é uma notícia perigosa. Passei esta década de olho nos estreantes e agora percebo que não consegui ler nem um terço do que fui encontrando durante a viagem. Como selecionar os melhores ficcionistas da geração dez se não consegui avaliar todos os melhores livros publicados de janeiro de 2011 pra cá?

O fato é que as poucas grandes editoras não detêm mais o monopólio de publicação dos melhores autores nacionais. Uma rápida olhada no catálogo de ficção das pequenas e médias editoras — lembrando que houve um crescimento exponencial também do número de pequenas e médias editoras — confirma que os bons autores e os bons livros estão distribuídos de maneira uniforme pela vasta paisagem editorial.

Da geração dez, esses são os autores que eu li até agora: Adriana Brunstein − Alex Xavier − Alexandre Nobre − Alexey Dodsworth − Aline Bei − Alliah − Álvaro Merlos Akinaga − Ana Cristina Rodrigues − André Caceres − André Knewitz − Anita Deak − Brontops Baruq − Bruno Liberal − Caco Ishak − Carla Diacov − Carlos Eduardo Pereira − Carol Rodrigues − Carol Sakura − Cirilo Lemos − Claudia Dugim − Claudio Brites − Deborah Dornellas − Eduardo A. A. Almeida − Eduardo Sabino − Eneias Tavares − Eugen Weiss − Fátima Britto − Geovani Martins − Giovana Madalosso − Giovanna Picillo − Gláuber Soares − Gustavo Matte − Guylherme Custódio − Isadora Krieger − Itamar Vieira Junior − Izilda Bichara − João Paulo Parisio − João Paulo Partala − Jonatan Silva − Jorge Filholini − Juliana Frank − Juliana Leite − Lady Sybylla − Leandro Durazzo − Leonardo Villa-Forte − Lidia Zuin − Lilia Guerra − Lu Ain-Zaila − Lucas Storni − Lucrecia Zappi − Luisa Geisler − Manoel Herzog − Marcelo Labes − Marcelo Maluf − Marcia Barbieri − Marco Aqueiva − Marco Severo − Matheus Arcaro − Michel Peres − Nanete Neves − Natalia Borges Polesso − Nathalie Lourenço − Oscar Nakasato − Otávio Linhares − Pádua Fernandes − Paola Siviero − Patricia Galelli − Paula Bajer − Paula Fábrio − Paulino Júnior − Pedro Carcereri − Plinio Camillo − Rafael Sperling − Raphael Montes − Renata Py − Renato Tardivo − Ricardo Josua − Roberto Menezes − Roberto Taddei − Romy Schinzare − Santiago Santos − Sérgio Lutav − Sheyla Smanioto − Sonia Nabarrete − Tadeu Sarmento − Tiago Ferro − Tom Correia −Wilson Alves-Bezerra.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho