O idiota da família

Na família literária brasileira o mais sagaz é sempre o idiota da família, o palhaço, o desordeiro
Rafael Sperling, autor cheio de manhas e artimanhas
02/08/2022

Sou o almirante de pupilas douradas e olhar penetrante. De meu mirante, eu miro e reviro o moribundo mundo-mundo vasto e imundo. Do ponto mais alto de meu altíssimo observatório, eu observo as manhas e artimanhas da humanidade. Do ponto mais alto de meu altíssimo observatório, esta manhã eu absorvo as manhas e artimanhas do Rafael Sperling. Sou o almirante de pupilas douradas e olhar penetrante, e vejo, de meu mirante, que na família literária brasileira o mais sagaz é sempre o idiota da família, o palhaço, o desordeiro.

Putaquipariu… Rafael Sperling incorporou um demoniozinho insidioso. Seus contos e poemas são traiçoeiras ciladas mentais que espancam a hipocrisia e a correção política. Festa na usina nuclear (2011) e Um homem burro morreu (2014) logo se revelaram duas das melhores coletâneas de contos deste início de século 21. Por que não foram premiadas e festejadas pelos festeiros institucionais é algo que eu não consigo compreender. Em seguida, seus primeiros poemas foram reunidos no décimo volume da coleção Kraft (Cozinha Experimental, 2016), criada justamente pra apresentar “novíssimos poetas em sua primeira recolha impressa”.

Nesses três livros, Rafael Sperling ridiculariza, espanca, eviscera e canibaliza nossa estúpida sociedade em estado avançado de decomposição, não poupando nem mesmo a estrutura física da realidade. Pra escapar de suas armadilhas escatológicas, o leitor sério e severo — incluindo o especialista, formador de opinião — costuma adotar uma de duas estratégias: (1) apenas ignorar os livros do autor, fingindo que jamais foram publicados, ou (2) reconhecer sua desagradável presença, mas promover um boicote invisível e silencioso contra novas publicações.

A prosa e a poesia do Rafael Sperling incomodam porque o palhaço da família, o desordeiro do condomínio, é antes de tudo um terrorista sacaninha que aterroriza a ordem e a razão enganosas, de fachada. Por meio do risível, da comicidade. Mais precisamente por meio do riso exterminador, de natureza trágica (segundo a classificação de Clément Rosset), impulso subversivo que invoca e abraça amorosamente o caos, o acaso, o não-lugar, enfim, o nada absoluto, espaço estrangeiro pra sempre vedado à razão e à linguagem, sempre tão arrumadinhas. Nos textos do Rafael Sperling “o riso é carregado de uma espécie de verdade mais verdadeira e de realidade mais real do que aquelas que nosso pensamento consegue apreender” (palavras de Verena Alberti, a respeito do humor que promove a vitória do caos sobre a aparência de ordem).

Página após página, as travessuras delirantes do Rafael Sperling vão detonando e deixando pelo caminho muitas vítimas: o falso bom-gosto (kitsch), o decoro fajuto e a prudência covarde, a vaidade intelectual, o papo-furado engajadinho (caça-clique), o tempo e o espaço realistas… Aliás, nessa caminhada homicida o primeiro a tombar é sempre o famigerado realismo psicológico, esse zumbi oitocentista que ainda beija e abraça a maioria de nossos ficcionistas. Contra o civilizado realismo psicológico o autor carioca convoca o surtado realismo psiquiátrico, mais doentio e violento.

Do ponto mais alto de meu altíssimo observatório, é de monstros que eu estou falando. De monstros histriônicos. Criaturas chamadas Adágia, Fincher, Lócrio, Homem, Éz, Airam, Sacul, Ataner, Dagda, Plonho, Horus, Clonérie, Tébia, Karício, Gagá, Ralência, Tíbio, Sleia, Jarst Wergon, Manganabo, Manimey Ohandna, Leretrário, Canibrédis, Glonzius, Catrapilas, Bordonésio, Jasdgh, Ctywaq, Pâncreas, Matrapalhy, Curdispór Arantes do Ná Cimento, Sânscrita, Caloaninho, Teolófito, Ponsamoto, Ertrion, Jargancio, Ardriguizo, Salada Real, Celuleia, Canteirinho, Klopart, Dingsold, Oupersaf, Unompil, Toblerone, Qfwfq, #+-4$#2, Sêlemo, Aracno, Gleretribo, Ploin, Mânima, Oulo, Meletribas, Berio, Tópi, Bêngolas…

Os leitores recorrentes do ensaio O grotesco, de Wolfgang Kayser, rapidamente perceberam que os contos e os poemas de Rafael Sperling oscilam entre o grotesco fantástico, com seu mirabolante fluxo onírico, e o grotesco satírico, com seu amontoado de máscaras bizarras. Neste e naquele, de que maneira nosso demoniozinho insidioso consegue o efeito de estranhamento cômico? Por meio da repetição de frases (anáfora), do exagero às vezes surrealista e do acúmulo de imagens insólitas. Linha após linha, Rafael Sperling vai dispondo absurdo ao lado de absurdo, violência em cima de violência, sem o menor pudor, de novo e de novo: repetição, exagero, acúmulo. O uso compulsivo da anáfora o aproxima de José Agrippino de Paula e André Sant’Anna. E de Fausto Fawcett, é claro, com quem Rafael Sperling compartilha também o gosto por personagens e enredos aloprados. Quatro irmãos no TOC, na zombaria e no grotesco.

Sou o almirante de pupilas douradas e olhar penetrante. De meu mirante, eu miro e reviro o moribundo mundo-mundo vasto e imundo. Do ponto mais alto de meu altíssimo observatório, eu não procuro showmícios nem fenícios. Eu procuro inícios, meus amores. Irresistíveis inícios. E estou convencido de que Rafael Sperling é autor, mais do que qualquer outro, de um bom sortimento de irresistíveis inícios.

Jesus Cristo espancando Hitler. Espancando e gritando coisas horríveis, para que ele sofra. Falando de como espancou e estuprou as avós de Hitler, a materna e a paterna. Falando coisas horríveis e espancando. Espancando seus ouvidos e gritando, fazendo com que ele sofra com as palavras e com os socos. Com os socos e com o cano de ferro.
(Jesus Cristo espancando Hitler)

Minha bigorna cantou uma ária de Puccini com muita elegância.

Depois me disse que estava esperando um filho. Abriu sua vagina e me mostrou o feto de bigorna que havia dentro de seu útero: uma pequena bigorninha.
(Minha bigorna)

Acordei com o estrondo tutti-frutti de uma estrela que explodia na constelação de Andrômeda. Saí de dentro do micro-ondas e rolei até o banheiro, onde urinei na pia de luz néon.
(Festa na usina nuclear)

Tínhamos muito em comum no que concerne a raposas e codornas. Ele teve mais experiências com raposas do que eu com codornas, mas eu tive mais incidentes com codornas do que ele com raposas.
(Raposas e codornas)

Minha avó era um lactobacilo vivo dentro de uma garrafinha de leite fermentado Yakult. Nós a conhecemos no dia do meu aniversário, durante a festa. Abri o Yakult e lá estava ela, a nadar alegremente.
(Surpresa de aniversário)

Dante Alighieri estava sentado em sua poltrona suja, ao lado de sua esposa Gemma Donati, que vestia roupas sujas, assim como Dante Alighieri, num ambiente sujo e fétido, repleto de restos de comida e lixo espalhados pelo chão, com seus filhos igualmente sujos e fétidos, e feios, assim como Dante Alighieri e Gemma Donati…
(Um dia comum para Dante Alighieri)

Eu gosto das histórias que minha babá conta. São boas histórias e têm sexo. Eu gosto de sexo, embora tenha apenas três anos. Eu nunca fiz, mas sei como é o sexo. Já vi na internet.
(Eu gosto das histórias que minha babá conta)

Estava espancando minha octogésima sexta mulher com um coador grave cintilante de gengibre turco modificado, quando meu cachorro gângster exclamou:

Céus! Esqueci as chaves pardas do carro gelatinoso na gruta ecumênica gastroesofágica, no lado amarelo da faixa.
(Cenas cotidianas)

Eu, você e todo mundo, juntos, tocando punheta e ejaculando em rede nacional, ejaculando no Brasil todo, deixando-o encharcado de porra, ejaculando na cara das crianças, dos velhos e das mulheres, ejaculando na cara estúpida da tua mãe, na bunda do teu cachorro e no quadro-negro das escolas…
(Ejaculando)

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho