Miragens & metamorfoses (final)

Mimetizei-me ao máximo e hoje sou o próprio clima, a atmosfera, um ser imenso que vê o mundo simultaneamente através de todos os seres vivos
Ilustração: Kleverson Mariano
19/09/2020

• Mário Almeida, o esquizofrênico… Você caminhou e caminhou e caminhou, acompanhou litorais, atravessou serras e sertões, cruzou pântanos e florestas, afastou-se da civilização e da sanidade mental. Valeu a pena?
Amigo, eu mergulhei completamente nas brenhas da natureza, voltando ao centro de mim mesmo, porque não somos outra coisa que não seja natureza. Voltei a mim mesmo, que é o estado de ser puramente toda a natureza ao mesmo tempo-espaço. Ao caminhar sem descanso por todos os litorais, florestas, serras, ao banhar-me nos rios e nas cachoeiras mais secretas, fui adquirindo gradualmente a consciência das paisagens, fui integrando minha mente ao ser de tudo que é a natureza. Colei-me a ela tão organicamente, que ultrapassei as sensações da matéria viva para ser um só com as paisagens. Mimetizei-me ao máximo e hoje sou o próprio clima, a atmosfera, um ser imenso que vê o mundo simultaneamente através de todos os seres vivos: animais, aves, peixes, insetos, plantas, árvores. Sou o próprio solo, territórios, montanhas, levitando-me, um ser orquestral, o ciclo das águas em todos os seus estados. Na consciência múltipla do mundo e das espécies, tornei-me um e todos, com meus olhos sem limites, olhos de paisagem. Consagração.

• João Jorge Ribamar, suas feições e suas lições parecem ora muito antigas ora muito jovens, oscilando no ritmo das marés. Conte-nos um pouco sobre tua maldição. É verdade que você “sempre viveu na escuridão das noites sem luar”?
Vocês sabem: sou o estranho que veio trazido num barco de papiro, desnudo, sobrevoado por pássaros do delta do Nilo, que também sou eu, eles sou eu, cuja cabeça misteriosamente mantida fora do corpo permaneceu viva e falante, durante séculos, como oráculo para o povo egípcio; eu sou o homem-deus cujo nome é sempre impronunciável, que veio do outro lado do Atlântico, atravessou o Mediterrâneo e chegou em resplendor tropical ao Egito antigo. O índio de Pindorama que chegou há milhares de anos ao Egito antigo, com sua voz de milhares de pássaros da floresta. Essa foi minha primeira aparição na obra do Carlos Emílio. Igual a todos os personagens, eu reencarno e reapareço em diferentes entidades. Eu sou o menestrel dos segredos, o ser de metamorfose contínua. Também posso ocupar diferentes corpos numa mesma época, podendo até realizar grandes encontros secretos, grandes festivais ocultos, em alguma ilha do Pacífico, com todas as outras pessoas que também sou eu. Porém, estes acontecimentos foram ocultados, em sua maior parte, nas páginas desse livro que se limita a me enunciar em alguns dos diversos momentos da história do mundo.

• Durante a leitura do romance, o leitor logo aprende a identificar e acompanhar teus avatares…
Então você se lembrará que eu sou o autor do relato fabuloso ao rei da Ibéria no século 16, contando tudo o que se passa nos labirintos da civilização subterrânea que sobrevive na cidade perdida da Amazônia, o tal relator que assina João Jorge dos Olhos de Gato. Sou também o índio que aparece inúmeras vezes a Augusto Lopes, em diferentes fases de sua vida, trazendo-lhe todos os segredos mágicos necessários de que ele precisa para continuar com otimismo e esperança nesta vida. Sou todas as identidades, minha voz é simultânea como a dos pássaros. Sou o índio andarilho contemporâneo em busca da Terra sem Males, fui um antigo bandeirante branco predador de índios nos sertões, fui um peixe que pesquei e logo depois devolvi ao mar, fui uma formiga-rainha voadora que ontem avistei ao entardecer, fui toda uma colmeia de seres que ainda serei e continuarei sendo por todos os tempos. Nada em mim pode ser contido apenas num corpo, numa alma, sempre serei esse tecido-composição de muitos seres, sempre serei tudo o que é possível ser, até aqueles seres que ainda não foram imaginados. Sou o tigre que me ataca. A baleia que ao emergir do mar em seu salto avista minha silhueta no litoral, sou a mulher que beijo agora, sou meu inimigo e meu melhor amigo. As árvores que eu vejo sou todas elas. Sou a própria Coluna de Clara Sarabanda, esse cordão de seres interligados viajando permanentemente através do infinito…

• Thot, você foi o chimpanzé de Antônio Luís por muito tempo… Quais segredos você poderia nos revelar sobre ele e a incrível luz solar-lunar da mitológica Atlântida?
Meu pelo de animal enigmático e transmutante aquece as palavras-moléculas, tornando-as mais velozes, esquenta as regiões conceituais mais abstratas dos textos espiralados que compõem A cachoeira das eras. Toda vez que o autor teoriza, em certas clareiras pensativas do texto, sobre os fundamentos da linguagem, e se esboçam ventiladas hipóteses sobre a origem e a alma das letras e dos símbolos ideográficos do passado, é por força da minha presença invisível que isso ocorre. Pois minha presença é um portal exato, um canal de condução a todas as memórias do cosmos. Como real e sagrado inventor de todas as escritas humanas, eu sou o ser-árvore-de-ligação-telepática entre todos os homens e mulheres da Terra, todos os seres vivos, entre os vivos e os mortos. Eu sou a força que traz de volta, com a facilidade dos pássaros, todas as cerimônias, línguas e costumes ancestrais somente aparentemente perdidos.

• Você é o antídoto para nossa sociedade envenenada. É a cura orgânica e espiritual para nossa civilização doente e à deriva…
Quando, no final marítimo do romance, Augusto Lopes e Clara Sarabanda chegam àquela remota aldeia de pescadores do litoral do Ceará, sou eu quem, através dos sonhos desse povo que perdera completamente sua identidade ao longo do tempo, repito, sou eu quem traz de volta os mitos, os rituais, as danças, as músicas e a própria língua verdejante de que eles, descendentes diretos de uma nação indígena que ali também vivera, não se lembravam mais. É pelo meu sopro atlântico que eles ressurgem, renascem, se tornam índios outra vez. Porque, ao me tornar a própria vasta brisa, o ar antigo que eles respiram de novo, eu faço renascer tudo o que estava morto e esquecido. Meu outro nome, além de Thot, e de milhares de outros que mantenho acesamente secretos, é Renascença Indígena, a força que envia do passado, de volta, a cultura mágica dos povos de Pindorama. É essa milagrosa luz solar-lunar que eu relanço sobre a Terra.

• Caros leitores, essa entrevista continuou por mais alguns meses, talvez anos ou décadas, não tenho certeza se ela realmente terminou ou terminará… Outros personagens pediram a palavra e confessaram suas inquietações e seus desejos, revelando novos e esotéricos abismos. Uma nuvem sinestésica cobriu o continente. Enquanto conversávamos, do centro dessa nuvem ecoava uma fala xamânica, eletrônica, em looping, que repetia e repetia e repetia:
> A cachoeira das eras > Epopeia pós-burguesa, pós-científica e pós-apocalíptica. > Reestruturação de um mundo. > Narração de uma coluna fantasmagórica de visionários que subverte os interiores de um Brasil mágico, aterrorizante e sem fronteiras. > Viagem imóvel. > Orquestração de sonhos e consciências. > Rapsódia premonitória de uma evolução subterrânea que está em andamento. > Grito de denúncia, revolta e redenção. > Descrição da última batalha entre os anjos das trevas e da luz no interior das cidades, nas praias e nos sertões (Jari versus Juripari). > História escrita segundo as diretrizes dos mitos ameríndios e mais antigos. > Saga inquietante e poética de uma nova época. > Delírio e lenda. > A cachoeira das eras > Epopeia pós-burguesa, pós-científica e pós-apocalíptica. > Reestruturação de um mundo. >

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho