Carta para M. R.

Encontrar um livro que será lançado somente daqui a quatro anos por uma editora ainda inexistente não é a coisa mais insólita que já me aconteceu
Ilustração: Beatriz Cajé
01/12/2020

Querido Rubião:

Aconteceu na semana passada, durante outro rápido passeio noturno apenas pra ventilar os pensamentos.

Abençoado pela aurora boreal mais majestosa já testemunhada em São Paulo — sim, no céu de Sampa! —, um fogo-fátuo indicou o local exato da pirâmide de cristal em que o livro estava guardado, me aguardando, perto da estação Vila Madalena do metrô.

Um livro totalmente fora do tempo e do lugar.

Título: Mundo-vertigem
Coleção: Gato de Schrödinger
Editora: Lorem Ipsum
Data de lançamento: primavera de 2024

Já estou acostumado com essas pegadinhas borgeanas patrocinadas pelo acaso. Acredite, meu irmão, encontrar um livro que será lançado somente daqui a quatro anos por uma editora ainda inexistente não é a coisa mais insólita que já me aconteceu este mês.

Estou com o livro. Quando nos reencontrarmos você poderá examiná-lo. Trata-se de uma coleção de contos. Para ser mais exato, trata-se de uma coletânea de ficções fantásticas de autores brasileiros: Amilcar Bettega, Carlos Emílio Corrêa Lima, Jamil Snege, José J. Veiga, Lygia Bojunga, Lygia Fagundes Telles, Rafael Sperling, Samuel Rawet, Veronica Stigger…

Obviamente, há um conto teu: Bárbara. Meu predileto.

Caralho! É a coletânea que eu sempre quis organizar, comentei várias vezes com os amigos, eu e você também já conversamos sobre isso… Alguém passou na minha frente. Se meu nome estivesse nos créditos, assinando a organização do livro, ficaria claro que meu eu do futuro próximo me enviou um exemplar, talvez pra me estimular a finalmente realizar o trabalho. Mas quem assina a organização do livro é alguém cuja índole eu conheço muito bem. Um antigo inimigo íntimo. Um legítimo calhorda.

Não mancharei está página escrevendo o nome do patife que roubou meu projeto.

Por mensagem de áudio, um parente destemperado me sugere que responda na mesma moeda, que pegue pra mim, de volta, a autoria do livro que o canalha enviou do futuro. É verdade. Eu posso muito bem publicá-lo agora, quatro anos antes, e desfazer a injustiça.

Talvez o livro organizado por meu desafeto tenha sido enviado a mim por mim mesmo, pelo meu eu do futuro. Nesse caso, fica bastante evidente o que eu tenho que fazer. Só não sei se terei coragem de me envolver nesse absurdo estelionato literário. Querido, o que você faria se estivesse em meu lugar?

Dê uma olhada na apresentação da coletânea e depois me diga se muito, muitíssimo de mim — compare com aquele rascunho que te enviei — não está nesse texto:

Mutatis mutandis: metamorfoses do real?
Dizem que em todas as capitais do mundo há uma escada que apenas desce. Você começa a subir correndo e quando chega ao final percebe que está novamente embaixo. O princípio geométrico envolvido é semelhante ao do muro que só tem um lado: você escala e salta por cima dele, mas acaba caindo no mesmo lado em que estava. Não importa quantas tentativas você faça, o resultado se repetirá, sem exceção.

Esses e outros fenômenos insólitos — portas que dão acesso apenas ao ambiente em que já estamos, casas e ônibus maiores por dentro do que por fora, elevadores que sobem ou descem infinitamente — estão sempre ao nosso alcance, mas poucas pessoas supersensíveis conseguem vislumbrar seus contornos: em cada século, apenas alguns videntes, sensitivos, loucos e cientistas. E alguns raros artistas e escritores, é óbvio.

Sorte ou azar, noventa e nove por cento das pessoas conseguem viver protegidas numa bolha cognitiva, indiferentes a certas leis bizarras que nos cercam.

É verdade que ninguém — nem mesmo os videntes, sensitivos, loucos, cientistas, artistas e escritores mais sensíveis — enxerga a realidade do jeito que ela realmente é. Mesmo a observação mais objetiva, mais desapaixonada, sempre contamina profundamente seres, ações, átomos e galáxias, adaptando-os a um provisório sistema de crenças e desejos. Filosofia e ciência estão de acordo ao menos num ponto: nós, humanos, enxergamos-adaptamos a realidade da maneira humana, demasiado humana, que a natureza nos aparelhou para enxergá-la e adaptá-la. Nosso jeitinho supercerebral de sentir, interpretar e modificar o mundo se revelou muito cedo uma poderosa ferramenta evolutiva.

Mas também é verdade que algumas pessoas sofreram uma mutação sensorial — talvez quando ainda estavam inconscientes no útero — e desenvolveram um sexto sentido que lhes permite, se não encarar, ao menos intuir certas estranhezas que brincam, serelepes, atrás da grossa cortina que nos protege das experiências grotescas da irrealidade cotidiana. Os escritores visionários aqui reunidos fazem parte dessa elite sensitiva.

Ou então nada disso é verdade.

Ou então o que eu disse até agora é somente outra espécie de delírio sem qualquer base artística ou científica, muito comum nas mentes idealistas metafísicas.

Permita-me explicar. Para alguns artistas e escritores, as obras de arte são um espelho que reproduz algum aspecto da realidade (real ou ideal, observada ou imaginada). Certo. Mas, para outros artistas e escritores, as obras de arte são uma estrutura que vale por si mesma, e as obras-primas são sempre um novíssimo objeto entre objetos já existentes. “A obra de arte é o próprio objeto recém-criado, que vale por si mesmo, e não alguma outra coisa real ou imaginária de que o objeto recém-criado seja uma expressão”, diria o professor Harold Osborne.

Nesse caso, as ficções fantásticas reunidas nesta coletânea não são visões de uma camada oculta da realidade à qual as pessoas comuns não têm acesso. Elas são, na verdade, novas e inquietantes camadas de realidade, inventadas pela fantasia desses atrevidos demiurgos literários. Ao concretizar em sentenças e parágrafos seus devaneios insólitos, esses ficcionistas estão enchendo nossa realidade trivial de objetos e situações bizarros antes inexistentes.

Enfim… Espelhos-de-uma-realidade-secreta ou novos-objetos-e-situações-bizarros? Fiquem os especialistas — cronópios, famas & esperanças — com a interpretação que julgarem mais confortável.

Consideração final: nesta coletânea o leitor encontrará quatro tipos de ficção fantástica:

• ficção fantástica trágica
• ficção fantástica lírica
• ficção fantástica satírica
• ficção fantástica com uma atmosfera sobrenatural

No início, eu até pensei em distribuir os trinta e três contos em quatro seções, mas logo percebi que essa organização claramente pedagógica roubaria parte da liberdade estética do livro e dois terços do prazer da leitura. Então preferi deixar o acaso decidir a ordem dos contos no sumário. Primeiro organizei-os em ordem alfabética, em seguida atribuí um número a cada um e então realizei um sorteio. O sumário foi decidido pelo Destino, pai e mãe da justiça insólita que administra o cosmos. Agora proponho ao leitor um jogo: defina você o que é, nesta coletânea, ficção fantástica trágica, lírica, satírica e levemente sobrenatural. Será que sua classificação coincidirá com a minha?

Por fim, o melhor modo para apreciar este livro foi sugerido pelo escritor Giorgio Manganelli, em sua magistral coletânea de ficções fantásticas intitulada Centúria: cem pequenos romances-rios. Segue a receita:

1. Conte o número total de linhas de texto deste livro.
2. Alugue um arranha-céu que tenha o mesmo número de andares.
3. Em cada andar coloque um leitor com um exemplar deste livro nas mãos.
4. Dê a cada leitor uma linha para ser lida.
5. Vá até o topo do edifício, respire fundo e salte.
6. À medida que você for caindo diante das janelas, o leitor de cada andar lerá, em alto e bom som, a linha que lhe foi designada.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho