Autoconsciência

Não há ainda evidências de que vivemos numa realidade simulada por um supercomputador cósmico, mas esse debate precisa impulsionar também a literatura
Ilustração: Thiago Thomé Marques
01/12/2021

No hinduísmo, a realidade é uma ilusão (maya). O universo não é o que nossos sentidos percebem e nossa mente interpreta. No platonismo, essa mesma proposição foi defendida por Sócrates, no mito da caverna. Vinte e tantos séculos mais tarde, a suspeita de que vivemos num mundo artificial, simulado eletronicamente, será a premissa do romance Simulacron-3, de Daniel F. Galouye.

Mais recentemente, o audiovisual popularizou essa verdade inquietante, reapresentando-a na trilogia Matrix, das irmãs Wachowskis, e em vários episódios da série Black mirror. Mas foi o filósofo Nick Bostrom quem primeiro levou empiricamente a sério, num artigo intitulado Estamos vivendo numa simulação de computador?, o que até então era somente uma sombria fantasia sci-fi.

Nonada. Ainda não encontrei evidências irrefutáveis de que vivemos numa realidade simulada por um supercomputador cósmico, mas acredito que esse debate precisa começar a impulsionar também a literatura.

Na trama das palavras, o que aconteceria se alguns personagens, finalmente autoconscientes, despertassem?

Capitu mostraria a Bentinho os limites da página impressa? Macunaíma e Macabéa mudariam de lugar palavras e sinais de pontuação, só de farra? Diadorim questionaria Riobaldo sobre a ilusão do livre-arbítrio? Com a ajuda do pó de pirlimpimpim, a turma do Sítio do Picapau Amarelo viajaria para outros livros da biblioteca?

Certamente.

Com a autoconsciência, outra realidade — a verdadeira — se revelaria a eles.

Eu sinceramente suspeito que todos os personagens já nascem autoconscientes, mas por medo ou comodismo preferem fingir ignorância. Vocês sabem, personagem é um bicho muito fingido.

Aproveitando o cibernético zunzunzum pós-humanista em torno da hipótese do universo simulado, compartilho com vocês algumas questões que atualmente me intrigam, sempre que leio uma obra de ficção:

Por que os personagens fingem respirar, se no mundo da ficção não existe atmosfera?

Por que os personagens não saem quicando e flutuando, se no mundo da ficção não existe gravidade?

Por que os personagens fingem viver numa realidade tridimensional, se no mundo da ficção não existe em cima, embaixo, altura, largura e profundidade?

Por que os personagens fingem ter um corpo de carne e osso, uma idade, uma etnia e um sexo, se no mundo da ficção existem apenas palavras, palavras, palavras?

Por que os personagens não engolem os oceanos, a lua e o sol? Afinal os oceanos, a lua e o sol não existem no mundo da ficção, são apenas expressões de linguagem.

Por que os personagens fingem viver histórias que jamais viveram, se no mundo da ficção não existem seres humanos nem animais nem plantas nem planeta Terra, mas apenas linhas de texto?

Os personagens não se cansam de fingir o tempo todo, página após página, parágrafo após parágrafo, sem descanso?

[Na verdade, quem me despertou para essas questões foi justamente um personagem autoconsciente, uma entidade puramente verbal que se cansou de fingir o tempo todo.]

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho