A utopia necessária

E se o papel dos escritores, além do papel, for o exemplo?
31/05/2018

Um muro de luz, cada vez maior — nós, de lanterna na mão.

Essa é a proposta do poeta André Argolo, em diálogo com os primeiros parágrafos do Manifesto : Convergência (ainda em progresso), publicados na edição de fevereiro do Rascunho.

Reproduzo abaixo os principais trechos de sua carta aberta. O texto integral será oportunamente publicado na web.

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Caríssimo utópico, o medo verdadeiro de ser muito tolo devia me impedir de te escrever. No entanto, canalhamente, ignoro meu senso e converso. A expressão comum “me desculpe por qualquer coisa” cabe bem aqui. A começar pelos trechos do manifesto que destaco. São os destaques possíveis da minha leitura agora, provavelmente pouca, talvez rasa. Mas um começo, uma aproximação.
(…)
O ficcionista/poeta é um doador de sentidos às palavras. É de Alfredo Bosi essa expressão, não é? Gosto dela. Seu chamado, Nelson, me parece um chamado aos ficcionistas/poetas para inaugurar um sentido para a utopia, criar uma utopia necessária a esse naco de tempo que habitamos e rabiscamos… No livro A universidade necessária, Darcy Ribeiro escreve: “A universidade de que necessita a América Latina, antes de existir como um fato no mundo das coisas, deve existir como um projeto, uma utopia, no mundo das ideias. A tarefa, portanto, consiste em definir as linhas básicas desse projeto utópico, cuja formulação deverá ser suficientemente clara para que possa atuar como uma força mobilizadora na luta pela reforma da estrutura vigente. Deverá ter, além disso, a objetividade necessária para que seja um plano orientador dos passos concretos através dos quais se transitará da universidade atual à universidade necessária. Este modelo utópico será necessariamente muito geral e abstrato, distanciando-se assim de qualquer dos projetos concretos que possa inspirar”.
Definir as linhas básicas desse projeto utópico…
(…)
Muros utópicos. E depois deles, a partir deles, rotas de utopias, jardins de utopias, campos de utopias. Promissor. O nome que me ocorre a isso é Esperança, essa que em mim anda rala. Bonito. Mas a parte que me atrai, a parte cansativa, suja e doída de construir ESSE muro é que me atrai mais. É muito católica essa vontade de entrega?

Vou misturar nessa minha carta-colagem-bateia a necessidade de construir teu muro (que se propõe também meu, nosso) e a universidade de Darcy. Do que precisamos para levantar esse muro utópico? De princípios de ação mais do que de nortes, pontos de partida e combustível mais do que de mapas? Quero tratar de dois princípios: o valor da vida humana e o valor do espírito crítico.
(…)
Conheço um sujeito chamado Genebaldo Freire Dias. Ele é ambientalista e não gosta desse termo. Ele estuda profundamente o impacto da humanidade na natureza, vê claramente a necessidade de uma mudança radical no modo de vida de todos para frear a destruição dos recursos naturais. Em nome do quê? Não é dos canguruzinhos, dos ornitorrincos, das onças, dos saguis, por nobre que seja a preocupação específica com cada espécie, mas é em nome da existência humana que ele se preocupa e alerta há algumas décadas. Genebaldo não é ecochato, na verdade ele é quase que óbvio. Mas de um óbvio que não se quer ver.

A palavra conforto pode ser uma vilã. Precisamos redefinir conforto. Que tal derrubarmos a parede da televisão para subir nosso muro utópico? Ah, não, da televisão não! Então a do sofá. Nãããooo, não, não. Dá pra encolher o guarda-roupa? Nãããooo, de jeito nenhum. Difícil abrir mão, né? A garagem, o carro na garagem. E nem cheguei nas piscinas…

Se a vida é o bem maior, estamos sendo contraditórios. Porque se a vida é o bem maior, a concentração extrema de renda é um mal em si. Onde sobra poder financeiro de um lado falta tudo a muitos outros lados, matemática simples.

De um capitalista convicto, já escutei que o problema é a superpopulação. Se a vida é o bem maior o problema não pode ser a superpopulação, o problema é o modo de vida vigente, que não comporta oito bilhões de pessoas competindo umas contra as outras e para isso estraçalhando os recursos naturais do planeta. O que está implícito no problema da superpopulação é que precisamos de um programa de extermínio, mais um, mais abrangente, mas bem lá longe, né? Pra não respingar. E também que não seja permitida a entrada de escritores e jornalistas. E manifestações contrárias sejam abafadas com rigor…

A livre competição criada pelos humanos não é compatível com a manutenção da vida na Terra. Não serve a lei da selva para nós, humanos: o mais forte, o mais rápido (olímpico e cruel). Isso faz parte das bases de uma utopia, eu acho, que privilegie a vida humana, que respeite a existência de todo indivíduo.

Indivíduo. Palavra que vem sendo desdobrada em bens e males. Individualismo. Isolacionismo. Salve-se quem puder. Eu primeiro.
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Caramba. E se o papel dos escritores, além do papel, for o exemplo? Grupo de vinte escritores cria uma vila para viver em cooperação. Como seria isso? O escritor fica velho e precisa de mais ajuda e vai ser ajudado por escritores mais novos? O grupo teria uma conta coletiva, em que cachês, direitos autorais, prêmios servissem para bancar planos de saúde, alimentação saudável, educação física para seus cérebros funcionarem melhor? Eu não sei!

Você é um experiente orientador de escrita literária, um professor, além de escritor. Quantos mais iguais a você? Eu estou no começo como professor e atacando pessoas que estão também ainda mais no começo na lida com a literatura. Precisamos ser mais, muitos! Precisamos comandar uma invasão da literatura em torno das escolas, já que dentro das escolas a briga é feia, como diz o poeta Iacyr Anderson Freitas. Cerquemos as escolas. Vou te pegar aqui fora!

O direito que cada humano tem de receber iluminação sobre a literatura e sobre a escrita literária não é condicional. Quando partimos do princípio de que a vida é única, infinita em suas possibilidades, sagrada, a visão de mundo e a história de cada pessoa é considerada imediatamente como matéria-prima da literatura. E o talento artístico, então, não é uma condição para a expressão pela literatura. O talento é um filtro posterior, menos importante do que o desejo de expressão e o direito à expressão pela literatura. O pensamento crítico plantado, quando brotar mais e mais, dará conta do que é mais relevante, do que será canonizado e tal. Não acha?

Não se trata de, por exemplo, transformar duzentos milhões de brasileiros em leitores e autores. Mas de aumentar significativamente a possibilidade do acesso a essa luz, reduzir a escuridão que avança. Minha utopia guarda a informação imprecisa de que, se tem tão poucos leitores de literatura no Brasil, dentro desse universo não-leitor há muita gente esperando uma iluminação, ainda que não saiba que espera.

Então o muro… será que o muro não pode ser também essa cortina de pessoas dispostas a iluminar a literatura para mais e mais gente? Um muro de luz, cada vez maior — nós, de lanterna na mão. Sustentados pela certeza de que nenhum bem é maior que a vida, que não há perda colateral aceitável em nome do conforto, que não há desprezo aceitável. Unidos pelo senso crítico, protegidos pelo senso crítico. Seguir escrevendo é essencial, mas iluminar além do nosso próprio caminho os caminhos e possibilidades da literatura me parece igualmente importante, fundamental. Muros de iluminação. Deve haver uma imagem que seja mais significativa e não encontrei ainda.

O assunto é maior do que posso abraçar, Nelson, admirado companheiro. Me perdi nos argumentos, mas acho que lancei sementes do que considero fundamental. E não tenho nem de perto a noção se isso acrescenta algo relevante. Mas, como disse no começo, canalhamente, ignoro meu senso e converso contigo.
[André Argolo]

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho