Você, incendiário

Dê uma pilha de papel e um isqueiro a um homem sem qualidades perceptíveis e ele logo voltará a ser a criança demente
01/01/2011

Você é apenas um homem sem qualidades visíveis. Nem jovem nem velho, nem inteligente nem obtuso, nem rico nem pobre. Você é apenas um homem comum e desencantado, que já acreditou em muita bobagem ideológica — na civilização, na economia de mercado, na integridade moral — e agora só acredita no fogo.

Agora só o fogo interessa.

O fogo que ilumina. O fogo que purifica.

Você é só um homem sem graça e sem carisma que se acha — me perdoe a expressão vulgar — um bruxo de desenho animado. Um aprendiz de feiticeiro. O último da face da Terra.

Vamos aos fatos: a gasolina espera meio impaciente ao lado do balcão de encomendas. Você pega o primeiro galão e começa a desenhar uma trilha trêmula no carpete, andando de costas, curvado e bambo feito um bêbado, deixando um rastro úmido, fedorento e inflamável. A cabeça dói um pouco. Você põe de lado o galão vazio e pega o segundo. Deslizando entre as estantes, dando voltas e voltas, passando algumas vezes pelo mesmo lugar, você pensa em Teseu no labirinto do minotauro. Joga fora o segundo galão e pega o último. Onde você vai deixando um fio de gasolina Teseu deixaria somente um fio de lã. Outros tempos. Não há mais Ariadnes. As costelas também doem um pouco e o labirinto está deserto. Nem virgens indefesas nem aberração antropófaga.

Duas cores cordiais: o vermelho e o azul. Você acende o isqueiro vermelho e fica observando a chama azul. É uma fada delicada. Linda. Para inúmeras culturas antigas o fogo era a origem e a essência do mundo. Você recolhe o polegar, o pino que libera o gás volta à posição de descanso, a chama morre. Na sua mão o isqueiro foi promovido a varinha mágica? Idéia ridícula, eu sei. Infantil demais. Mas dê uma pilha de papel e um isqueiro a um homem sem qualidades perceptíveis e, tcharam, ele logo voltará a ser a criança demente e descontrolada que sempre foi.

Não menospreze o poder aliciante da fada azul. Queimar é um grande prazer. Um prazer muito especial. Um orgasmo. Tacar fogo. Incendiar. Fazer os livros crepitarem, saltarem na brasa, mudarem de forma.

Você acende novamente sua varinha mágica e encosta a chama no início da trilha de gasolina desenhada no carpete verde. Essa é a terceira cor importante hoje: o verde. Você não sabe por que essas cores tão simples estão chamando sua atenção. Percebe apenas que existe certa graça menina, irracional, na maneira como a chama azul estica o corpo e escorrega do isqueiro vermelho para o tapete verde. Uma fada faiscante na floresta tropical.

A chama azul é uma entidade lógica e matemática que faz exatamente o que foi programada para fazer: se alastrar, esticar os tentáculos e as antenas, crescer na trilha de gasolina desenhada no carpete verde, aumentar a temperatura ambiente, atrair e devorar o papel. Agora o rastro fedorento e inflamável arde entre as estantes iluminando reentrância e irregularidades.

Fagulhas pimponeiam. Você guarda o isqueiro no bolso da bermuda e se afasta um pouco para não se queimar. Algumas janelas estão abertas e uma lufada fria faz o fogo curvar o corpo e beijar o chão. A fumaça começa a tomar posse do primeiro andar da livraria. A fada vai se desdobrando, crescendo, ganhando calda e focinho e escamas e garras e dentes. Um dragão foi solto no recinto, intimidando o homem que o conjurou. O homem: o aprendiz de feiticeiro. Amedrontado, entorpecido com a dança das chamas, você cambaleia até a porta de vidro que se abre automaticamente e logo de fecha. A coragem volta. Agora protegido pela porta de vidro você fica admirando o incêndio, a fada-dragão.

Para Heráclito e para muitos outros espíritos tão ou mais inflamados do que ele, no Ocidente e no Oriente, o fogo sabe tudo, o fogo controla tudo. O cosmo arde. As almas ardem no inferno, no purgatório e no céu. No nirvana. Em Asgard. Ardor. Ardência.

Queimar é um grande prazer feito de pequenos prazeres: escolher o local, espalhar a gasolina, libertar a delicada fada azul de sua prisão vermelha, acompanhar seu crescimento, sua metamorfose, sua fome, contemplar — a uma distância segura — o grande dragão chinês, admirar a reação física e química do monstruoso réptil de muitas cores, seu apetite descomunal, seu processo digestivo e metabólico, espiar o fogo se transformando em água, em oceano, as ondas ferozes batendo nas paredes, a maré subindo, magenta, lilás, ultravioleta.

Uns livros se contorcem e entortam sem cair da prateleira. Outros, os menores, incham e explodem lançando pra frente folhas retorcidas cheias de verdades taciturnas. Quem precisa delas? Quem precisa de leis, diretrizes, dogmas? Não existe júbilo maior do que ver as brochuras, pobrezinhas, e também as grandes encadernações de capa dura, todas elas veículos de axiomas e truísmos obsoletos, aceitarem submissas a extinção violenta. Delícia das delícias, o fogo purificador é sagrado, bizarro. Suas espirais analfabetas não fazem qualquer distinção. Elas avançam com metódica imparcialidade, consumindo com a mesma lascívia a seção de poesia, depois a de ficção, depois a de biografia, depois, depois, depois. Eros: o papel ama o dragão, o dragão ama o papel. Porém, como costuma acontecer na natureza, a cópula não é rápida, não é pacífica, muito menos indolor.

A madeira das estantes perfiladas crepita e confessa seus pecados numa língua incompreensível, profana. As prateleiras articulam sufocados pedidos de socorro. Os parafusos e os ganchos de metal saltam longe. Um pouco menos corajoso do que um minuto atrás, você, bruxo de desenho animado — um homem realmente comum, sem qualidades salientes —, se afasta da porta de vidro que em breve será feita em pedaços pelo bafo quente do dragão. Da criatura que você — sujeito mediano e desencantado — invocou, multicolorida, com um simples golpe de isqueiro.

Os romances, as coletâneas de contos e poemas, os ensaios e as teses acadêmicas estalam e cacarejam junto com as estantes que caem escandalosamente umas sobre as outras. Rumor de armas, tremor de terra. As chamas já tomaram todo o andar térreo da livraria. Uma muralha faminta, vistosa, ergue-se vários metros e encontra mais alimento no segundo andar (arte, ciência e religião), depois no terceiro (filosofia, política e economia, idiomas, dicionários e enciclopédias), depois no quarto (livros sobre música erudita e popular, seção de CDs e DVDs), depois, depois, depois. Eros é sempre insaciável.

Para Zoroastro e para muitos outros espíritos tão ou mais flamejantes do que ele, no Oriente e no Ocidente, o fogo deflora tudo, o fogo fecunda tudo.

Quatro horas se passaram. Neste momento o oceano avança para cima e o edifício inteiro arde. Quinze andares do mais puro ardor. Ardência na grande avenida. Os primeiros homens, caçadores sem escrita nem celular, olhavam para o céu noturno e viam centenas de fogueiras muito distantes. Ao redor de cada fogueira, uma tribo? Um agrupamento de deuses? De demônios? Ninguém sabia. Dezenas de milhares de anos mais tarde você contempla o prédio em chamas sob o céu estrelado. Sim, você mesmo, o sedentário com escrita e celular, que nunca caçou nem um frango na vida, você sabe que os pontos luminosos da abóbada celeste não são prédios em chamas muito distantes.

Não são conjuntos comerciais separados pela escuridão.

Você sabe.

Mas esse tipo de conhecimento não é suficiente pra fazer de você um homem feliz. Não, non, nein, niet, extintas salas comerciais, poliglotas salas comerciais da grande avenida! Esse tipo de conhecimento tão luminoso, tão repetido nos livros incendiados, não é capaz de salvar esse pobre-coitado — o último aprendiz de feiticeiro — do vazio e da sombra.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

Rascunho