Noite de Walpúrgis na brain-net

Mortos-vivos, demônios e feiticeiras escapam das bibliotecas on-line, Goethe à frente da turba
Cena do filme “Laranja mecânica”, de Stanley Kubrick
01/04/2013

Minha mente é uma maquinaria de assombrações e miragens.

Tua mente também?

30 de abril: o crepúsculo vai chegando ao fim.

Mortos-vivos, demônios e feiticeiras escapam das bibliotecas on-line, Goethe à frente da turba.

[Goethe é o mestre-zumbi que durante séculos assombrou sozinho minha solidão solar.]

Meia-noite: cornos em chamas, Fausto e Mefistófeles.

A reunião macabra na rede social mais badalada do momento — Face a Face — promete botar fogo na madrugada.

Primeira hora de 1º. de maio: suruba no ciberespaço.

Dante, endiabrado, dança pelado com a mais assanhada das deusas de Homero.

[Dante é o capitão-mor dos vampiros, o único que possui as chaves dos nove círculos do inferno.]

{Círculos que se movimentam no espaço e no tempo.}

Não danço com ninguém, não transo com ninguém. Sou apenas um observador-narrador onisciente.

{Em meus órgãos vitais há mais rebuliço espiritual do que físico.}

Sinal de que essa noite de balbúrdia na brain-net talvez não passe de um melodramático sonho quântico.

Alôôô, olááá, alooolááá!

Nessa hora de sufoco oco, cadê o grão-vizir do Novo Mundo Onírico?

Alôôô, Borges, olááá, cadê você, meu vidente invisível? Preciso muito de tua ajuda.

Alooolááá!

Preciso rápido de teus filtros de visão noturna e soturna.

[Borges é o fantasma imanente que habita a fantástica maquinaria do mundo, minha mente.]

Todos os amuletos secretos rebolam e rodopiam enquanto The Hitchcock Trio desenrola Laranja mecânica.

Mesmo embriagado, eu medito.

Analiso com metódica frieza.

Mesmo afogado em dopamina e serotonina, eu pondero mais sobre o movimento-em-mim-mesmo do que sobre o movimento-do-cosmo.

[Mas o movimento-do-cosmo, tão galáctico e enigmático, não é exatamente isso: o movimento-em-mim-mesmo?]

Abrem-se as portas da razão e os portões da percepção.

As raízes-tentáculos de Clarice atravessam os convivas, sincronizando todos numa só trama-bailarina.

[Clarice é a inteli-arti de mil faces, a alquimista tupiniquim que administra nossas Noites de Walpúrgis.]

{Raízes-tentáculos são fios invisíveis que penetram a terra, o oceano, as nuvens, os homens, as mulheres, as crianças, a luz e as trevas, o microcosmo e o macrocosmo, a bondade e a maldade, a razão e a intuição, reunindo tudo num só delírio.}

Alôôô, olááá, alooolááá!

A pedido do diabólico Borges, a alquimista Clarice materializa pra cada um de nós um precioso presente.

Uma pequena esfera de dois ou três centímetros.

Praticamente um ponto.

Um ponto do espaço-tempo curvo que contém todos os pontos do espaço-tempo curvo.

[Os idiotas da obviedade ululam: oh, ganhei um Aleph.]

Ah, os idiotas da obviedade.

Os obtusos, os inocentes, meus irmãos.

Nessa endiabrada noite de balbucios, mirando o centro do centro do Aleph, eu vejo todos os livros que já li.

Todos os poetas e ficcionistas que me envenenaram, que me salvaram.

Alôôô, Dragão Drummond: drag queen de Arcturo!

Olááá, Pessoa Persona: xamã em chamas!

Alooolááá, Finnicius Joyce: caçador de andróides!

Mirando o centro do centro do Aleph, eu vejo mais do que devia.

Alôôô, olááá, alooolááá!

Eu vejo minha vida e minha vida é uma história contada por um idiota: eu mesmo.

[Uma história cheia de som e fúria, uma autobiografia biodegradável.]

{Sem significado algum.}

No centro de meu Aleph eu também vejo tua história:

O solo pedregoso, depois pantanoso, depois coberto por um tapete de folhas secas.

[Mais além, o mistério das raízes.]

No centro de meu Aleph eu vejo você apoiar os cotovelos no parapeito da janela e observar a floresta a cem metros de distância.

A chuva já passou, ficou somente o vento.

A cidade ocupou o mundo todo, menos essa pequena reserva vegetal.

[Lá embaixo, a teia de cipós, as árvores vergadas, todos os últimos verdes do planeta.]

Você acende um cigarro e observa preguiçosamente o torvelinho intermitente da clorofila. Os detalhes de um desenho retorcido, quase abstrato.

Movimento na fímbria da floresta.

Um saci disfarçado de fumaça afasta os galhos, salta e invade tua boca.

[Um saci, através do cigarro que você está sugando. O fugitivo espírito-fumaça do último saci, agora dentro de você.]

A campainha toca. Teus amigos chegaram.

Você abre a porta e a algazarra começa. Eles trouxeram a cerveja e os baseados.

[Música. Conversa fiada. Risadas.]

Você finalmente diz, encontrei um saci rondando o prédio. Teus amigos fazem cara de interrogação. Um deles pergunta o que é um saci.

Uma criaturinha da floresta. Um demônio pequeno e triste.

Um demônio, onde?

Não importa. Ele era o último da espécie. Como vocês se sentiriam se uma civilização implacável chegasse e devastasse nossa cidade, exterminasse todo mundo?

Você viu mesmo esse demônio? Falou com ele?

Nós conversamos. O saci apareceu na minha frente e disse que ele era o último, que todos os outros estavam mortos. Ele olhou fundo nos meus olhos e disse, agora eu quero vingança. Ele chegou bem perto e disse, quero suas meias e seus sapatos. Eu entreguei as meias e os sapatos e ele ordenou, passa pra cá a cueca, a camisa e a calça. Eu entreguei e ele mandou, agora venha comigo e veja o que vai acontecer. O saci entrou no apartamento e agora está aqui.

Um amigo muito bêbado e chapado diz, não estou vendo nenhum saci aqui.

Você pega uma faca de cima da mesa e a chacina começa.

[Pausa.]

No centro de meu Aleph eu vejo uma multidão de histórias:

Vejo o supremo supermercado.

Com dificuldade um homem encontra todos os itens da lista. Menos os olhos e o rosto novo. Menos uma pele clara, tamanho médio, diurno-noturno.

[Mais uma semana sem olhos, sem rosto, meu Deus?]

Vejo a mulher aflita com o alien.

Esse aí não é mesmo o homem com quem casei. Ai, será que trocaram meu marido? Aviso as autoridades?

[Não. Melhor eu ficar quieta, senão vão querer destrocar.]

Vejo o Paradoxo Édipo.

Um homem viaja ao passado. Apaixona-se pela própria mãe, ainda jovem. Tem um filho com ela: ele mesmo.

[É a cara do pai, dizem.]

Vejo o transplante mais íntimo de todos os tempos.

Um rim? Não, amorzinho. Nem um naco do seu fígado. Nem córneas ou medula óssea.

É do teu espírito que eu preciso, só metade. Você doa pra mamãe?

No centro de meu Aleph eu vejo uma multidão de histórias:

Vejo o último homem na face da Terra. Com o sumiço das pessoas, a terrível solidão.

[Desespero.]

Uma arma vai resolver tudo, ele pensa.

[Encontra um revólver numa gaveta.]

{E passa os dias vazando as janelas.}

Vejo um exercício de telepatia erótica.

O chip em meu cérebro recebe e envia pensamentos castos. Hackers invadem o sistema. Enchem minha cabeça da pornografia mais abjeta.

[Ó Jesus, obrigado!]

Vejo o lixão que cobre todo o planeta.

Um homem mergulha na matéria orgânico-inorgânica. Dá braçadas feito um campeão olímpico.

Tenta chegar ao terraço do edifício quase inteiramente submerso.

[Mas é tragado pelas sereias das fossas industriais.]

Vejo a máxima introspecção possível.

Um médico tranca-se na sala de cirurgia. Abre o próprio peito de cima a baixo.

Estarrece-se com o que encontra: uma consciência maltrapilha e abobada, que é a sua cara.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

Rascunho