Um momento da festa de Ivan Ângelo (1)

Um capítulo apenas para apontar as inquietações formais de um escritor que fez experimentos consistentes
2011 / Marcelo Min / Fotogarrafa /
24/11/2018

Como na coluna anterior tratei da crise de inventos na nossa literatura, trago nesta coluna e na próxima algumas considerações sobre um capítulo, em especial, do inventivo romance A festa, de Ivan Ângelo. Um capítulo apenas para apontar as inquietações formais de um escritor que fez experimentos consistentes. Tratarei, assim, de Documentário, capítulo que abre a obra de 1976. Sobre o protagonista: o capítulo inicial de A festa tem como protagonista Marcionílio de Mattos, 53 anos, que atuou no cangaço (era admirador de Lampião). Atuou também nas Ligas Camponeses, comandadas por Francisco Julião. Marcionílio, após um incêndio provocado em alguns vagões, comanda uma rebelião de retirantes nordestinos (cerca de oitocentos) que iriam, na madrugada de 31 de março de 1970, tomar o trem de volta para o Nordeste na estação ferroviária de Belo Horizonte. Os rebelados se dispersam pelas ruas da cidade. Os poucos policiais que estavam no local investem contra o grupo, tentando conter a rebelião, mas não obtêm êxito. Marcionílio é, no fim, preso, tomado como subversivo (lembrando que a ação se passa em 1970, na época do governo Médici, o mais contundente no combate ao comunismo, tendo torturado e eliminado inúmeros integrantes da esquerda). Marcionílio tenta fugir da cela de uma delegacia do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), órgão da repressão política, e é morto. Marcionílio, assim, no enredo, encarna, por um lado, a figura de um herói (se visto pela perspectiva de quem defende os flagelados e/ou famintos nordestinos, ele tem virtudes, é valoroso) e, por outro, de um anti-herói (para quem adere ao ponto de vista do regime militar, ele é, ao organizar um movimento social, um subversivo, um “comunista”, “extremista”, “desordeiro”; enfim, um “fora da lei”). Essa ambiguidade aplicada no foco narrativo expressa bem o que estava posto na sociedade brasileira do período: o enfrentamento entre os militares (representantes da direita e da extrema-direita) X a esquerda. O fragmento final do capítulo, que remete ao confronto armado entre os militares e os que os contestavam, expressa ainda uma retórica típica do jornalismo da época, que atacava os grupos de esquerda e os movimentos organizados da sociedade: “Marcionílio, o frustrado líder camponês que há três anos tentou trazer a subversão do campo para a cidade, chefiando um verdadeiro regimento de famintos, em conexão com extremistas da Capital, arrebatou a arma de um policial, imobilizou um guarda, ganhou o saguão do DOPS e correu pela avenida Afonso Pena abaixo, atirando em seus perseguidores. Um tiro de um dos agentes que corriam em sua perseguição atingiu Marcionílio na cabeça, que caiu já sem vida” (grifos meus). Fica claro, aí, que a violência que eclodia naquela época, do ponto de vista dos militares, era coisa da “subversão” — e a violência do governo era apenas represália, um mero revide. Daí o fragmento soar irônico, operando certa paródia do discurso jornalístico, pois o principal agente da violência nos anos 70 era mesmo o regime militar (como comprovam documentos, incluindo-se alguns mais recentes, que apontam práticas de tortura e assassinatos em série, do conhecimento das altas autoridades e dos próprios presidentes da República do período).

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

Rascunho