O escritor e a condição feminina

Em arte não apenas as questões estéticas, de constituição das formas, são importantes
01/04/2009

Em arte não apenas as questões estéticas, de constituição das formas, são importantes. A visão de mundo do artista é fator também decisivo, de valorização da obra. No caso particular da literatura, o escritor precisa estar antenado (a palavra parece batida, mas ainda tem a sua legitimidade) com as questões de seu tempo. Há um fundo ideológico que marca cada época, que a institui. O autor não pode ficar desatento a isto, sob pena de ser um extemporâneo (no mau sentido do termo). Um autor, por exemplo, que, seja qual for motivo, não saiba que a segunda metade do século 20 alterou significativamente a condição da mulher, que vários sujeitos sociais despontaram na década de 60, reivindicando respeito, justiça, numa palavra, integração aos grandes projetos — um autor que desconhece ou vira o rosto para tais fatos corre o sério risco de assimilar visões tradicionais, patriarcais. A condição da mulher, reitero, mudou muito nas últimas décadas. Atento a isto, como deve proceder o autor para representar essa nova condição na obra? Não é uma fórmula, apenas a indicação de um rumo. Primeiro, a resposta tem que ser com a sensibilidade. O autor deve se desbloquear, se sensibilizar para a justiça da causa feminina. Em seguida, deve procurar entender quais passos podem ser trilhados para contribuir — com a obra — para certas transformações. A literatura tem, sim, poder transformador. Cada indivíduo que experimenta, com a sensibilidade e a razão, o teor de uma verdadeira obra literária tem amplas condições de mudança. Uma grande obra inquieta, aponta novos ângulos da realidade. Uma grande obra desestabiliza visões consagradas, redimensionando-as. O escritor que em sua obra retrate a mulher (ou o negro, ou o índio, ou o favelado) deve, ao que tudo indica, munir-se de duas noções — respeito e justiça. Ter respeito para ser justo, ou ser justo para ter respeito. Com Chico Buarque, por exemplo, na pesquisa que fiz em meados dos anos 90 sobre a representação da mulher em suas canções, aprendi a ter respeito e a ser mais justo com a condição feminina. Chico me mostrou, em Mulheres de Atenas, que as mulheres são submissas porque o poder masculino as prepara, molda-as, para tal. Então é preciso repensar os poderes do homem, atribuindo também poderes à mulher. Chico me propôs, em Las muchachas de Copacabana, que a prostituta, aos olhos de um homem de posse e sequioso de prazer, é apenas corpo, carne, e que o corpo dela é uma mercadoria como outra qualquer; me provou, em Tango de Nancy, que as mulheres se prostituem sobretudo por problemas de sobrevivência, e que a alma e o sentimento delas sobram, se perdem, no ato de alugar o corpo. Chico me advertiu, em Ela e sua janela e em O meu amor, que o desejo da mulher é ativo, impetuoso, e não passivo, como certa tradição entende; me advertiu que sexo é um signo de felicidade forte também para a mulher — e que portanto, como homem, não posso pensar que só eu conduzo, que só eu sou o sujeito da união erótica; numa palavra, não posso pensar só em mim. Chico, aqui, atenuou grandemente o meu machismo (e como de algum modo não tê-lo, leitor, em sociedade de práticas, em vários contextos, ainda tão marcadamente patriarcais?). Chico Buarque, por fim, me ajudou muito a elaborar, em meus contos e em meu romance, as minhas próprias personagens femininas. Após estudá-lo, fiquei muito mais atento para o universo da mulher, para as suas buscas e anseios. Para a justiça que está na base de sua causa. Assim, e para concluir, acredito que o escritor, com sua liberdade, tendo, como ponto de partida, respeito e senso de justiça, pode representar qualquer tipo social, qualquer condição — da mulher, do negro, do favelado, etc. —, e ser eficaz, pertinente, em sua representação. Em arte, em literatura, penso que não há questão de gênero. Há, antes, uma questão de talento: um escritor com sensibilidade e visão de mundo apurados, e amparado numa forma bem arranjada, bem construída, pode representar legitimamente a condição de qualquer minoria, ficando perto ou com o mesmo senso de humanidade que um representante de tal minoria pode ter.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

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