Machado impiedoso

Machado de Assis, cujo centenário de morte é agora em 2008, é para muitos o melhor escritor brasileiro de todos os tempos
01/10/2008

Machado de Assis, cujo centenário de morte é agora em 2008, é para muitos o melhor escritor brasileiro de todos os tempos. É o nosso grande mestre do realismo. Ele soube retratar, como ninguém, as tensões sociais e de classe do seu tempo; soube interpretar magistralmente o Brasil da segunda metade do século 19, que transitava do Segundo Império para a Primeira República. Nossa elite aspirava à modernidade européia, tendo como base idéias como as do positivismo, do republicanismo, etc., mas, na prática, mantinha relações seculares, calcadas na relação senhor e escravo. Como uma sociedade pode ser moderna, pode aspirar à “emancipação coletiva”, uma das promessas do positivismo, se mantém em suas bases modos arcaicos de produção e interação? Machado denuncia a violência da escravidão, por exemplo, em contos como Pai contra mãe e O caso da vara. Para mim, dois textos decisivos, irretocáveis no retrato dessa instituição que, em nosso país, perdurou muito tempo. Além disso, Machado é um caso extraordinário, de autor da chamada periferia (dos países ocidentais) que se eleva a gênio. Ele desperta interesse e é atual pela absoluta genialidade em investigar a alma humana, em entender os mecanismos de ambigüidade dos seres, quase sempre divididos entre o prestígio e o prazer, quase sempre interessados em si mesmos. Machado se utilizou da ironia como o recurso mais apropriado para o material humano e social que estava retratando. E tornou-se, em nossa literatura, um mestre insuperável do romance e do conto, sobretudo.

Memórias póstumas de Brás Cubas antecipa aspectos fundamentais da estrutura do romance do século 20. É uma narrativa não-linear, que rompe com o modelo consagrado pelo realismo. Dom Casmurro traz a paradigmática personagem Capitu, cuja suposta traição a Bentinho ainda hoje é debatida. O ponto de vista do livro — o de Bentinho — permite uma ambigüidade de base, pois estamos lendo o relato de um ciumento que se admite traído e que vai nos dando pistas, não inteiramente aceitáveis, da traição da mulher. Mas se Capitu traiu ou não Bentinho é um aspecto que diz respeito à própria concepção romanesca de Machado, ou seja, a capacidade que ele teve de tecer esse narrador extraordinário que é o Bentinho, cheio de incertezas, e que tenta o tempo todo convencer o leitor do “delito” da mulher. Tudo o que é dito sobre Capitu, é bom repor, decorre do ângulo adotado por Bentinho. O leitor, assim, antes de desconfiar de Capitu deve primeiro desconfiar do próprio Bentinho. Portanto, Dom Casmurro é um romance que traz na sua estrutura profunda uma forte carga irônica. Não é irônico você gerar incertezas e dúvidas sobre algo que está incerto e duvidoso e falar disso com ar de educado, de civilizado, apostando neste último aspecto como um recurso infalível para seduzir o leitor? Eis o narrador Bentinho. Além de construir a narrativa com astúcia, tentando convencer o leitor da culpa de Capitu — e, por conseqüência, da inocência dele —, Bentinho narra a história com um certo autoritarismo. Um autoritarismo que já foi decodificado como sendo o da classe dominante brasileira de seu tempo.

Mesmo as figuras femininas dos romances da fase romântica de Machado — Ressurreição, A mão e a luva, Helena e Iaiá Garcia — já são flagradas em situações que as tornam ambivalentes, ambíguas em suas escolhas, opções. E a ambigüidade vai se estabelecer, para sempre, como a marca principal dos seres machadianos. A ambigüidade que desvela o interesse, o amor-próprio. Ou “egoísmo universal”, para usar a boa expressão do crítico e professor Alfredo Bosi.

Machado é um autor do passado, do presente e do futuro. Sempre iremos recorrer às suas narrativas, porque elas guardam significados permanentes do homem. Enquanto houver gente na terra, Machado permanecerá. Permanecerá como intérprete impiedoso da natureza humana. O seu desencanto radical, segundo ainda Alfredo Bosi, decorre da desconfiança de que o homem não melhora. Nada o faz melhorar. Isto é terrível, não? Vai de encontro a muita coisa, a muitas ideologias progressistas da modernidade.

Qual o melhor: o romancista ou o contista Machado? Que os dois se igualam, disso eu tenho certeza. Mas às vezes sou levado a crer que o Machado contista supera o Machado romancista. Ocorre que o conto e o romance são gêneros diferentes, de fatura diferente. Não vejo, como podem pensar alguns, o conto machadiano como um exercício para a narrativa mais longa do romance. Além disso, do ponto de vista da crítica literária, não há gênero superior a outro. Considerar que o conto é um exercício para a escrita do romance é de algum modo considerar o romance um gênero superior ao conto. E não é assim. Às vezes há autor que é um excelente contista, mas que é um romancista apenas mediano. E vice-versa.

Missa do Galo, em enquete que realizei em 2006 com dezessete escritores brasileiros, foi escolhido o melhor conto de Machado. De fato, há muita sutileza, muita ambivalência nesse conto. Eu o considero o melhor conto de nossa literatura. Por conter na medida exata aqueles elementos que Julio Cortázar considerou indispensáveis no conto moderno — significação, tensão e intensidade. A história é narrada com muita precisão, sem digressões que retardem indevidamente o desfecho. E o desfecho, como propõe Cortázar quando trata do caráter “significativo” do conto, projeta a nossa inteligência e sensibilidade para além da história narrada. Deixa uma abertura de sentidos que faz desse conto um relato ímpar em nossa literatura. É tão sugestivo, que ainda hoje pensamos nessa conversa cheia de lacunas da casada Conceição com o adolescente Nogueira. Pensamos com uma certa angústia, com um certo desejo de que algo tivesse efetivamente ocorrido entre os dois ali naquela sala. Ou mesmo no quarto…

Machado ou Rosa? Qual o melhor? — perguntaram recentemente. Eis um (péssimo) sintoma da cultura brasileira: o de, aqui e ali, serem postos uns contra os outros grandes nomes de nossa cultura. Assim, indaga-se: Oswald ou Mário? Machado ou Rosa? Rosa ou Clarice? Uma visão que não soma, mas, de algum modo, exclui. Acho os dois importantes, não sei escolher. Mesmo porque um tem coisas que o outro não tem. Machado passa ao largo da inventividade vocabular de Guimarães Rosa. E Rosa, penso, não tem a mesma força irônica de Machado. E os dois, acredito, não são superiores a Graciliano Ramos (se tomarmos São Bernardo, por exemplo, como o ponto alto do autor alagoano).

O jovem contista e romancista deve sempre ter em mente a lição machadiana. E ser impiedoso na hora de construir os seus personagens. Impiedade, essa é a grande lição do mestre para o jovem escritor.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

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