João Fernando André (Kalunga)

Ensaio fotográfico com João Fernando André
Foto: Ozias Filho
01/07/2025

(…) Há um pássaro dentro de mim / que tem medo de voar (…)

A poesia como martelo e espelho; como ferramenta de denúncia, sem ser panfletária. A poesia que simplesmente diz, sem floreados ou subterfúgios. Assim se constrói Evangelho bantu, do angolano Kalunga, pseudônimo de João Fernando André. Uma poesia que oscila entre o lírico e o político, entre o corpo e a terra, entre a palavra como instrumento de sedução e de revolta. Dividido em três partes distintas, mas interligadas, o livro mergulha nas raízes bantu enquanto desfere golpes precisos (e preciosos) contra as estruturas de opressão. Uma poesia que não teme se posicionar, quer seja diante do amor, da identidade ou das feridas expostas do mundo.

Em Amar, celebra-se a mulher na sua multiplicidade de semblantes: a amante, a musa, a mãe e a mulher-divindade. A sensualidade ganha corpo em versos que fundem o tátil e o etéreo: (…) até sentir os segredos da criação da vida (…). O feminino é elevado ao sagrado, quando une o divino africano ao desejo humano: (…) és alfa e ómega do uniVerso (…). Mas o amor também é interpelado vigorosamente: Onde anda o amor?/ anda nas guerras?/ anda nos refugiados mortos?/ anda nos amores trocados pelo dinheiro?! (…); entre êxtase e desencanto revela que amar é, em si, um ato de resistência, a mais potente resposta política contra as intolerâncias.

Nos Manifestos, a voz se transforma em lâmina ao retratar a vida nos musseques (bairros pobres de Luanda), onde crianças (…) com calções rasgados no rabo (…) herdam a mesma miséria dos adultos, todos lutando para respirar numa Angola desigual, e partida ao meio. A denúncia de muitas faces explode em Sanguessugas, em versos que sangram: (…) A religião suga os que têm fé / os que têm fé sugam os deuses (…). Em Poema doutrinário, encontramos um libelo contra a hipocrisia global, a ironia contra as potências para que estas comam petróleo e diamantes, enquanto entregam armas aos professores.

Em Evangelho bantu, a última parte desta construção, o poeta resgata a África com orgulho e lirismo, afirmando que Antes de sermos bantu/ Somos homens (…), rejeitando com isso, reduções étnicas sem negar as suas raízes. A fusão de línguas (kimbundu, português) tece uma estética que é ancestral e contemporânea. Em meio a referências diversas, rejeita o paraíso imaginário de Manuel Bandeira, declarando que não voltará a Pasárgada, pois o seu compromisso é com a terra que o gerou.

A certa altura, o escritor confessa ter um pássaro dentro dele que (…) tem medo de voar. (…). No entanto, Kalunga voa alto, sustentado nas asas da memória e da revolta, mostrando que a sua poesia é uma das ferramentas essenciais para que se perceba o mundo e, mais particularmente, a Angola de hoje e, por extensão, as dores e delícias de um continente em permanente reexistência.

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho
Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho
Foto: Ozias Filho
João Fernando André (Kalunga)
É professor, investigador, ensaísta, escritor e consultor cultural angolano. Associado ao Institute for Humanities in Africa at the University of Cape Town, à Universidade de Lisboa, ao Projecto ECO-África e à Alliance Française. Doutorando em Literaturas, Artes e Culturas Modernas. Publicou Evangelho bantu; O dia em que uma pedra virou lua e Lumbu – A alquimia das palavras, entre outros.
Ozias Filho

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1962. É poeta, fotógrafo, jornalista e editor. Autor de Poemas do dilúvioPáginas despidas, O relógio avariado de DeusInsularesOs cavalos adoram maçãs e Insanos, estes dois últimos, em 2023). Como fotógrafo tem vários livros publicados e integrou a iniciativa Passado e Presente – Lisboa Capital Ibero-americana da Cultura 2017. Publicou em 2022 o seu primeiro livro infantil, Confinados (com ilustrações de Nuno Azevedo). Vive em Portugal desde 1991.

Rascunho