Poesia e futebol no Uruguai

Estou na Livraria Britânica, perto do Cabildo. Vejo um Manuel Bandeira exposto na vitrine e um ou outro livro em português
O músico uruguaio Eduardo Darnauchans
01/07/2013

08.11.1993
Vôo Rio-Montevidéu, Pluma, 10h30 da manhã. Festival de poesia na capital do Uruguai. Estou na Livraria Britânica, perto do Cabildo. Vejo um Manuel Bandeira exposto na vitrine e um ou outro livro em português. Resolvo entrar e pergunto desabusadamente:

— Como se explica que vocês tenham livros em português na vitrina?

O dono começa a conversar, simpático. Surge um outro barbudo, falante: diz que viveu no Brasil seis anos, que foi exilado, que é argentino e que se lembrava de um poema “brutal” que leu no Brasil. E continuamos falando. Então narrou que esteve no Recife (e volta e meia referia-se a esse poema “brutal”) e na Amazônia, que aprendeu muito com os brasileiros e que faz artesanato. Mostra-me um peixe de madeira esculpida e volta a falar do poema “brutal”, indagando de quem seria. Me diz que o viu na parede da Anistia Internacional. Eu curioso e ele dizendo que conheceu vários brasileiros com grana, que trabalhou para os Bloch e não sei mais o quê, e que esteve preso. Voltou a falar do poema e, enfim, começou a recitá-lo…

— Mas esse poema é meu!

Acabamos nos abraçando. E ele ainda me deu o peixe esculpido de presente, depois de mostrar o subterrâneo da livraria, seu ateliê.

Seu nome: Fontanarosa.

Depois de minha leitura de poemas no Cabildo, acercaram-se leitores, e um em especial veio dizer que gostou dos poemas e acabou se desculpando pela vitória no futebol, em 1950. Eu digo que a história estava com ele, ele insiste em falar mal de Obdulio Varela. Agradeci a delicadeza. Sortilégios da poesia.

Senta-se ao meu lado Claudia Schwartz com livro de Adélia Prado que tem meu prefácio. Gosta também de O amor natural, de Drummond. Ficou surpresa que nesse caso também o prefácio fosse meu.

A seguir, neste festival, um bonito cenário para leitura de poemas — o Planetário: tudo escuro, céu cheio de estrelas, a Lua em movimento e os poetas dizendo poemas. O melhor era Luis Bravo.

Ando pelo bairro de Carrasco no domingo ensolarado. Leio o El País: Fellini e a notícia de sua morte. Os uruguaios comendo noventa e cinco quilos de carne por ano. Ontem assisti com Julián Murguía e Washington Benavides ao concerto de Eduardo Darnauchans. Benavides é citado várias vezes no show. Fomos depois ao Lobizon. Aparece Darnauchans. Simpaticíssimo. Ele e Benavides contam que nos anos 1960 musicaram meu poema Pedro Teixeira, e Benavides canta uma parte. Conversamos sobre a tradição dos cantores medievais e lembro que aquele meu poema faz apropriação de uma cantiga medieval: alta a noite, longe é. Eu era, em 1962, monitor do mestre português Rodrigues Lapa.

Passo pelo monumento a Supervielle, Laforgue, Lautréamont. Me lembra o irônico poema em prosa de Murilo Mendes:

O Uruguai é um belo país da América do Sul, limitado ao norte por Lautréamont, ao sul por Laforgue e a leste por Supervielle.

O país não tem oeste.

As principais produções do Uruguai são… Lautréamont, Laforgue e Supervielle.

O Uruguai conta três habitantes: Lautréamont, Laforgue e Supervielle, que formam um governo colegiado. Os outros habitantes acham-se exilados no Brasil, visto não se darem nem com Lautréamont, nem com Laforgue, nem com Supervielle.

Montevidéu parece a Belo Horizonte dos anos 1950. A ditadura traumatizou a todos. O majestoso hotel em Mar del Plata: um cassino decadente gerenciado pela Intendência, parece castelo de Drácula.

Museu Romântico: visita. Linda casa que foi de um tal Antonio Montero: ver aqueles quadros/retratos, personagens masculinos/femininos, todos de preto, os espelhos que usavam, eu ali refletido neles, as cadeiras, poltronas bordadas, usadas, onde colocavam suas bundas; as xícaras, os copos, o piano, a vida em molduras dourada, a roupa preta, o tempo coagulado, denso: eles amavam, eles sonhavam, conheceram grandes mesquinharias e pequenos sortilégios.

Do outro lado do tempo nos contemplam.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

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