Literatura e televisão (na França)

Affonso Romano relembra os bons momentos do programa de entrevistas francês "Apostrophe", comandado por Bernard Pivot
O jornalista francês Bernard Pivot
01/02/2012

18.01.2012
Nos dois anos em que dei aulas em Aix-en-Provence, via semanalmente o notável programa Apostrophe; Bernard Pivot entrevistava escritores. O programa tinha uma audiência imensa. As livrarias da França expunham nas vitrinas e mesas os livros citados no programa. Pivot, durante 30 anos, foi um invejável fenômeno de comunicação. Leio agora no Le Nouvel Observateur que três programas dedicados a livros na televisão francesa deixarão de existir. Permanecerá apenas La Grande Librairie, de François Busnel. A reportagem se refere a Pivot como uma lenda. Abro algumas anotações feitas há 30 anos.

03.03.1981
Na TV-2, programa Apostrophe de Bernard Pivot. Entrevista uma jovem autora que escreveu Paul Nizan, communiste impossible. Vem à tona o problema da relação intelectual dentro do “partido”. Confirma-se tudo o que eu pressentia na adolescência e não ouvia ninguém dizer: o “partido” é uma “igreja”.

Nizan largou o “partido” desiludido com a Rússia, que fez um acordo com os nazistas (década de 30). Os comunas, então, passaram a execrar Paul Nizan, a chamá-lo de tudo. Só muito recentemente se pôde ver isto claramente.

Também no programa, depoimento de Olivier Todd — Un fils rebelle. Ele diz algumas coisas sobre Sartre, coisas que eu e Marina já havíamos conversado quando publicamos no JB uma longa entrevista de Simone e Sartre comentada por nós dois.

Percebe-se que Simone era mais séria, ele às vezes opinava sobre livros que não lera. De minha parte, lendo a trajetória dele, resumida no Nouvel Obs, vi certa ligeireza nas suas tomadas de posição.

30.04.1982
Acabo de ver outro Apostrophe: René Girard (Le bouc émissaire), Evtushenko (Les baies sauvages de Sibérie), e um chato inglês David Lockie (L’amour d’une reine). Pivot fez perguntas duras a Evtushenko: sobre a Sibéria, por exemplo. E ele contra-atacou dizendo que não era inspetor de prisões para responder. Sobre Stálin: disse ser anti-stalinista, mas não aceitou compará-lo a Hitler. Atacou também a malícia de Pivot, que se saiu bem, dizendo que tal malícia era francesa.

Evtushenko dá uma impressão sólida. Tem lá conflitos com seu país, mas saiu-se bem. Fez sobretudo uma fala antinuclear.

René Girard é interessante, mas esse cristianismo dele é de matar. Sua teoria sempre voltando à mitologia e à Bíblia me parece um belo exercício ficcional. O ensaísta neste sentido é semelhante ao romancista: criar metáforas que dêem conta da interpretativa do real.

02.05.1982
Acabo de ouvir no Apostrophe uma das mais incríveis histórias jamais imaginadas. Mas real. Vou comprar o livro Elissa Rhais, de Paul Tabet. Ela foi uma escritora famosa entre 1918 e 1939. Um rico comerciante no Marrocos vende sua filha de origem judia para um harém onde as mulheres não têm nada a fazer senão engordar. Seu nome: Leila Bou Mendil. Quando ela chega à adolescência, seu senhor resolve que ela vai ter que se apaixonar por ele. Durante meses tenta tudo. A jovem se deixa possuir, mas não demonstra o menor sentimento. O senhor então ordena que ela fique enclausurada para sempre. Um dia, o senhor morre. E ela, liberta, recebe uma herança de família. A situação se inverte: ela agora conhece um garoto de uns 15 anos a quem toma como amante e a quem decide contar algumas estórias do harém. O garoto resolve escrever a história. Ela conta outra. Ele a escreve. Ela, que era analfabeta, faz chegar os originais a um editor, mas com o seu nome. E assim, durante dezenas de anos ela mantém o rapaz anônimo e freqüenta a vida social-literária de Paris, onde é requisitadíssima. Porém, no dia em que vai receber a Légion d’honneur, leva consigo o garoto e o escândalo aparece. Passado o terremoto, daí a poucos anos ela morre. O rapaz, de nome Raul, casa-se, constitui família. E nunca contou à sua própria família essa história vivida. Ele tem um filho a quem conta a história de ter sido aprisionado pela mulher, que assim se vingava dos homens. Mais: pressente que se ele deixar o pai sozinho, o pai se matará. Resultado: cansado de uma vigília, o rapaz deixa o pai a sós. Daí a duas horas o pai se mata. Passam-se 15 anos e o rapaz, enfim, escreve esse livro.

No programa também Roger Vadim (L’ange affamé), Vittorio Gassman (Un grand avenir derrière moi) e Roger Gouse, cunhado de Mitterand, amigo de Bernanos, com quem conviveu no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial (Le mirroir portable).

Incrível o programa. O sarcasmo e a ironia de Gassman dizendo que virou ator no enterro do pai, quando sentiu a situação do ator que se observa; que não chorou, e que após o enterro fechou-se no quarto e quebrantou-se em lágrimas. Debochado, diz que ama mulheres, dinheiro e representar inclusive filmes ruins tanto quanto os sublimes.

Vadim fazendo um discurso sobre a necessidade de manter a curiosidade fora da profissão, manter a juventude mais que a carreira.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

Rascunho