Razões para uma estética popular
Na sua brilhante Formação da literatura brasileira, o mestre Antonio Candido, sob o título geral de Regionalismo, traça um longo e correto quadro de nossa produção literária, destacando o romance de 30, que chamaria de nossa “década de ouro”, em que convergiram obras destinadas ao combate político e social do país. Notadamente o escritor Jorge Amado, densamente responsável por grandes romances, que traçou o caminho que devíamos ter seguido, com rigor, porque ali estavam as bases do que nos convinha como literatura.
Jubiabá, Capitães da areia e Terras do sem-fim podem ser vistos, assim, como o núcleo do pensamento amadiano, sobretudo devido ao combate ao racismo e a uma clara ditadura da elite rural, que impôs seu poder na base do trabuco, do assassinato, do crime e da violência de toda ordem, violência depois levada para as cidades.
Se para a estética clássica o objeto central é a beleza idealizada, perfeita e falsa — ou seja, impossível e burguesa —, para a estética popular o objeto é a profunda injustiça social e a violência, com todo seu cortejo de horrores: miséria, racismo, falta de educação, agressão policial, falta de recursos e assistência social, salário indigno, etc. Mesmo que se considerem os elementos internos da narrativa para efeito das histórias, destaque-se prioritariamente a violência que sacrifica negros, operários, trabalhadores, idosos, mulheres e jovens.
Dessa forma temos a estética clássica, com Aristóteles indicando a forma da beleza: Harmonia, Proporção e Grandeza. Nós sugerimos o seguinte: Temas, Personagens e Linguagem. Tema: injustiça social. Ou seja, protagonistas violentados nos seus direitos. A linguagem das ruas, em oposição à gramática portuguesa, que pela própria natureza é apenas portuguesa. Como o exemplo que segue:
Dir-lhe-ia que a terra é redonda;
Lhe digo: a terra é redonda.
A construção do personagem
Jorge Amado propõe em sua obra revolucionária, por tudo isso, e, em consequência, uma estética popular brasileira, com elementos da sociedade estruturada em sua maior parte na injustiça. Em Jubiabá, por exemplo, o negro Antônio Balduíno é submetido à miséria, obrigado a construir uma vida — a construção do personagem — em meio ao abandono, sem expectativas, sem educação ou qualquer direito, tendo que esmolar e até assaltar para sobreviver. No final, Balduíno percebe que ser livre é ter direitos sociais e políticos, depois de liderar uma greve.
“A greve o salvou. Agora sabe lutar. A greve foi o seu abc.” Vejam que bela ambiguidade, as duas inteiramente válidas: abc para apender a ler? Ou abc para educá-lo politicamente?
Através desta construção é que nasce o herói negro brasileiro, vindo da fome e da injustiça social para, com muita luta, e alguma marginalidade — em Jubiabá, por exemplo, Jorge Amado antecipa Capitães da areia, com meninos levados à delinquência porque não têm direitos sociais elementares. Pedro Bala é o novo herói ao lado de Balduíno. É nesse sentido que Jorge Amado propõe a estética popular brasileira, buscando em nossos traços culturais, que alimentam e cultivam a injustiça, os elementos centrais.
Parece difícil, senão impossível, justificar uma estética popular, mas já podemos colocá-la, de imediato, em oposição à estética clássica, elitista e conservadora, apoiada no conceito grego de uma beleza idealizada. Em Jubiabá, vamos encontrar os elementos desta possível estética a partir do tema da luta contra o racismo e a pobreza, com a seleção dos personagens e a escolha dos protagonistas Antônio Balduíno e Jubiabá, sem esquecer as figuras femininas, considerando sobretudo a velha Luiza e Augusta das Rendas, assim como Joana e Lindinalva. Essas mulheres ganham forma por meio da linguagem, sobretudo nos diálogos, onde se expressa a voz do povo, a verdadeira linguagem do Brasil, o nosso português legítimo, aquele que não se aprende na gramática portuguesa. Que, pela definição, é portuguesa, apenas. Acentuando-se ainda a ironia, sobretudo em Capitães da areia, onde as expressões “coração do mais chique bairro da cidade”, “aristocrático” e “urge uma providência” destroem, de propósito, mais do que enriquecem, o texto e colocam seus autores-personagens em ridículo. Mas Jorge Amado escreve as palavras nas cartas que os leitores enviam aos jornais. E ainda na voz de Amélia, personagem de Jubiabá: “Este negro é safado que só…” Ou na voz de Damião, um negro velho: “Ocês quer ver costa marcada?”.
Antônio Balduíno é criado a partir de um menino pobre, indigente, órfão, criado livremente ao vento no morro Capa-Negro, em Salvador, sem escola, educado no abc das ruas e tendo como exemplo as figuras heroicas de populares que se tornam cangaceiros, lutadores de capoeira, jagunços, desordeiros. Por isso mesmo quer ser um deles quando crescer, principalmente jagunço. Aos oito anos já estava brigando nas ruas, quebrando a cabeça de outro menino, Zebedeu, que teve a ousadia de chamá-lo de “cozinheira”.
Este modelo de personagem voltará a aparecer, sobretudo em Capitães da areia, onde se contam as histórias desses meninos seduzidos pela delinquência, porque lhes faltam, minimamente, a assistência do poder público por meio de escolas, creches, saúde, lazer, e tudo aquilo que conhecemos na nossa sociedade. Delinquir é a saída para quem, desde a infância, é marginalizado, esquecido, silenciado, portanto, sem opções de sobrevivência. Ao lado disso, falta emprego aos pais, um mínimo razoável de assistência. Por conta disso, todos são obrigados a viver conforme a conveniência. Tia Luiza, por exemplo, vende mungunzá para os mais pobres ou tão pobres quanto ela; Augusta vende rendas; o Espanhol tem uma pequena e miserável mercearia, vendendo para receber quando for possível, ou nunca.
Em Capitães da areia, a construção de Pedro Bala obedece ao mesmo padrão, sendo que a briga, de cunho pessoal, que Balduíno teve com Zebedeu, é substituída agora pela luta, de cunho coletivo, de Pedro Bala com Raimundo pela liderança do grupo.
O abc de Balduíno
Os pobres não são apenas pobres, mas miseráveis. Esta é a comunidade do morro do Capa-Negro, frequentada por desordeiros como Zé Camarão, praticante de capoeira e um dos mestres de Balduíno, ao lado do pai de santo Jubiabá. Zé Camarão não só é professor do rapaz em lutas e brigas de rua, mas, sobretudo, o substituto do pai, que bebia valentemente. O morro é apresentado, no entanto, em situação ambígua pelo narrador: “Eram bem gostosas as noites do morro do Capa-Negro”, embora “a vida no morro de Capa-Negro fosse difícil e dura”.
Não há informações de que Balduíno sequer fora alfabetizado, mesmo que tenha encontrado no pai de santo Jubiabá seu educador, que o iniciou na luta política com a biografia de Zumbi dos Palmares, que se tornou seu herói predileto. Tinha, porém, uma profunda admiração pelos folhetos de feira, com destaque para o ABC, em geral destacando a vida heroica de personagens populares, sobretudo aqueles que lutaram pela dignidade dos pobres, entre eles Lampião, e, já no final do livro, o próprio Balduíno, que também é homenageado com um ABC, o que significa a exaltação do personagem. “O ABC de Antônio Balduíno, trazendo na capa vermelha um retrato do tempo em que o negro era jogador de boxe, é vendido no cais, nos saveiros, nas feiras, no mercado modelo, nos botequins, pelo preço de duzentos réis, a camponeses moços, a marinheiros, a jovens carregadores do cais do porto, a mulheres que amam os camponeses e os marinheiros, a negros tatuados, de largo sorriso, que trazem ora uma âncora ora um coração e um nome gravado no peito”, conta o narrador inominado no parágrafo final do romance.
Lindinalva é só dor
Se não bastasse toda esta dor social, que obriga o pobre e o negro brasileiros a viverem num mundo marginal, sem direito a nenhum bem, Balduíno foi submetido, mais adiante, a uma humilhação vinda de gente tão pobre quanto ele: a empregada Amélia, por inveja e ciúme, cria uma armadilha para ele, enredado na acusação de brechar a nudez da branca Lindinalva, filha do comendador, enquanto ela tomava banho. A própria Lindinalva contribuiu com a acusação, afastando-se de Balduíno, de quem foi amiga na infância. Assim, mais uma vez injustiçado, o personagem é obrigado a fugir para esmolar.
Para não cair na armadilha do “bem” contra o “mal”, ou dos personagens vítimas do destino, Jorge Amado cria a personagem Lindinalva, a princípio intocada, branca, romântica e rica, filha de comendador, promotora de uma grande injustiça contra Balduíno, mas também envolvida num mundo de miséria e inquietação. Jogada na prostituição, ela vai decaindo, sobrevivendo em cabarés de baixa categoria, até morrer num quarto sujo. Na verdade, Lindinalva, como personagem, é frágil desde o nascimento.
Os dois, todavia, têm traços românticos bem fortes. Ele porque sonha em se tornar um jagunço para se vingar da injustiça humana e do racismo; ela sonhando com o amor ideal, o jovem louro que a tiraria de casa para um mundo deslumbrante. Mundo que se mostrou áspero, duro e cruel.
A branca Lindinalva colabora com o racismo da invejosa Amélia contra Balduíno. Em tempo, ela encontra o seu sonho de olhos verdes, tem um filho e desaba na prostituição — este episódio lembra muito A dama das camélias.
Linguagem: ironia e graça
No capítulo da linguagem, destacamos que a estética popular busca a riqueza da fala, de que tanto falava Mário de Andrade. Jubiabá é um livro denso e forte, embora o autor tenha tentado lhe dar algum riso e alguma música. Em Capitães da areia, Jorge Amado avança com toques de riso e ironia, sem perder, contudo, a violência. Nas cartas à redação, interessante renovação técnica que o autor realiza, temos o exemplo de uma rica ironia acrescentada à violência, como já disse. A simples palavra “linda” é uma crítica ao mundo dos brancos poderosos. Observem: “Aconteceu que no jardim a linda criança que é Raul Ferreira, neto do comendador, que se achava de visita aos avós, conversava com o chefe dos capitães da areia, que é reconhecível devido a um talho que tem no rosto. Na sua inocência, Raul ria para o malvado, que sem dúvida pensava em furtá-lo”.
Examinando o parágrafo, notamos logo a forte ironia do autor ao mostrar que os meninos conversam tranquilamente, mas enquanto o lindo Raul é um verdadeiro anjo “na sua inocência”, o chefe dos capitães, também um menino, é “malvado” e “tem um talho no rosto”, que o torna feio e malvado. Mas o que impressiona, acima de tudo, é a riqueza da linguagem e das imagens na estrutura da cena. Lado a lado, e em permanente oposição, os ricos e os pobres.