Pelada em Berlim

O jogo era para ser ao lado de Chico Buarque, mas um segurança estragou tudo; restou uma emocionante partida com ofegantes alemães
O timaço de peladeiros na Alemanha: Flávio Carneiro é o segundo agachado da esquerda para a direita; Dawid está logo atrás dele.
01/06/2007

Peladeiro é igual em qualquer lugar. Sempre achei isso. Minha teoria, no entanto, carecia de alguma comprovação científica, de algo que lhe conferisse status de verdade incontestável e a tese pudesse então, quem sabe, ser publicada em livro e servir de tema para seminários internacionais com a presença de doutores em pelada chegados dos cinco continentes.

Pois tal comprovação veio em Berlim, durante a última Copa do Mundo. Eu estava lá trabalhando no projeto Copa da Cultura, do MinC, e fui chamado para integrar um time de escritores e músicos brasileiros, capitaneado pelo Chico Buarque, que jogaria contra um combinado de jornalistas alemães. O jogo estava marcado para a Arena da Adidas, uma réplica de estádio de futebol, com arquibancada e tudo. Na parte de baixo, um campo de futebol society, de grama sintética.

Cheguei ao local da peleja levando a tiracolo uma bolsa com meu material de trabalho: chuteiras, caneleiras, calção, meiões. Estava tudo certo. Um belíssimo dia de sol, o calor ameno, as arquibancadas cheias. Ao tentar entrar para os vestiários, no entanto, fui barrado por um segurança alemão que me disse que com aquela credencial eu teria acesso apenas às arquibancadas, ao campo não. Abri a bolsa, mostrei a ele o material e respondi que tinha vindo para jogar no time do Brasil. Ele arregalou os olhos: você, no time do Brasil?

Não no Brasil, Brasil, tive que explicar, no time do Chico Buarque. Mesmo assim não pode entrar, ele retrucou, é preciso outra credencial, com essa só na arquibancada. Pensei em retrucar que não dava para jogar futebol na arquibancada mas receei que seu senso de humor não fosse lá essas coisas. E de nada adiantaram meus apelos, nem os da produtora que havia me convidado, até um funcionário da embaixada brasileira ali presente foi acionado. Nada demovia o alemão, absoluto, irredutível, imutável como um cartão vermelho.

Quando dei por mim, os dois times já estavam em campo e o juiz apitava, dando início à partida. Resignado, fui me sentar ao lado da minha turma. Na arquibancada.

E eis que senão quando um amigo berlinense, Dawid Bartelt, da anistia internacional, que havia acompanhado tudo à distância (talvez prevendo que minha batalha seria em vão), se aproximou, colocou a mão no meu ombro e disse: liga não, sábado te levo para bater uma bola com uns amigos meus.

Pelada de verdade tem que ser aos sábados. Em dia de semana é meio sem graça e no domingo não tem nada a ver. Poderia, claro, elencar aqui todos os motivos que me levaram a essa conclusão. Se os tivesse. Não tenho motivos mas sei que é assim: pelada tem que ser no sábado. Por isso gostei quando o Dawid me fez o convite.

Combinamos de nos encontrar numa estação de trem, num subúrbio de Berlim, onde ele me pegaria de carro. Às 15:35, ele me disse, e fingi não estranhar tamanha exatidão.

Desci do trem exatamente às 15:32 (está pensando o quê?), me sentei num banco de madeira e fiquei esperando. Minutos depois chega ele, caminhando calmamente pela estação, de camisa branca arrumada dentro do enorme calção preto, na altura do umbigo, meiões brancos e chuteiras. Diante do meu olhar de espanto, tentou se explicar: é meu uniforme de vôlei. E completou: quer dizer, sem as chuteiras. Ah, bom, respondi.

Chegamos ao local do evento. Ele estacionou o carro num pátio. Ao descer do carro, travei a porta do carona. Foi a vez de ele se vingar, abrindo um largo sorriso: ei, não estamos no Rio não. Um a um, concluí.

Caminhamos até o portão e lá estava o gramado, um imenso campo aberto, cercado de árvores. Olhei em volta e não demorei a entender que estávamos num campo de rugby!

Isso não vai dar certo, pensei comigo. Perguntei ao meu amigo onde estavam as traves de futebol, quer dizer, se é que havia traves. Claro que tem, ele respondeu, ligeiramente ofendido, já estão chegando. Não me atrevi a perguntar exatamente o que ele queria dizer com aquilo: as traves chegando?

Logo depois entraram pelo portão alguns dos outros peladeiros, um dos quais trazendo uma bolsa, e dentro dela quatro pedaços de madeira, longos e finos, pintados de azul com listras verdes. Eram elas que chegavam, as traves.

Um deles fincou as traves no lugar e começaram a dividir os times. Como em toda pelada que se preze, havia um número ímpar de jogadores: nove. Decidiram, sem discussão, como se fosse uma decisão óbvia, que o time em que eu jogasse teria um jogador a menos. Ninguém sabia se eu era craque ou perna-de-pau, contava apenas um fato: ser brasileiro. Confesso que me senti a própria pátria de chuteiras e roguei aos céus que não fizesse nenhuma grande besteira, tentando manter a boa imagem do país no exterior.

Começou o jogo e só então me dei conta de que o alemão fincara as traves na transversal do gramado, quer dizer, o campo ficara curto no comprimento e imenso na largura. A lateral direita era marcada por uma estradinha de terra, toda torta, e a esquerda se estendia ao infinito e além.

Aquilo me comoveu, confesso. Era um convite ao improviso, ao imponderável, e gostei mais ainda dos alemães (talvez porque naquele momento, sem que ninguém me dissesse nada, tenha aprendido um pouco mais sobre eles).

Depois de uma hora de correria alucinante a partida estava empatada, acho que 4 a 4, quando o goleiro deles rebateu a bola, que veio parar justo à minha frente. Matei no peito e quis fazer bonito: tentei encobrir o goleiro, com estilo. Bola fora. Virei o corpo e dei de cara com meu time me olhando com cara de quem comeu chucrute estragado. Por que não chutou com força?, perguntou Dawid, desolado. E não disse, mas deve ter pensado: brasileiros, bah!

A certa altura do jogo minhas pernas simplesmente se recusavam a me obedecer, enquanto os caras, quarentões que nem eu, corriam sem parar, parece que disputando a final da Copa. Para minha sorte, a pelada foi interrompida por uma senhora, que entrou no gramado querendo saber quem trancara a bicicleta junto com a dela.

Resolvido o problema, recomeça a partida, justo na hora em que soam as seis badaladas do sino da igreja ao lado do campo. Viajei. Voltei à minha infância e me vi não entre aqueles simpáticos grandalhões de rosto afogueado mas entre moleques brasileiros, pés descalços, jogando bola no campinho em frente à igreja, até a hora da Ave-Maria.

Quando a pelada já estava acabando, ainda chegou um retardatário, de óculos e todo vestido de preto. E entrou no time deles, que já tinha um a mais!

No final, a glória: ganhamos o jogo. Recolhi o que sobrara de mim depois de quase duas horas de futebol e fui saindo de campo. Alguns caras do outro time se aproximaram e me cumprimentaram (eu acho), dizendo palavras das quais só distinguia uma: Ronaldo. Ainda não sei se era elogio ou ironia, mas o certo é que tudo terminou com abraços calorosos, piadas que não entendi, e uma foto para registrar o momento histórico.

No caminho de volta para casa, já dentro do trem, me lembrei do que me dissera um outro amigo: há duas palavras para “peladeiro” em alemão. Uma delas é Amateurkicker. Literalmente: chutador (de bola) amador. Aqueles alemães sabiam o que era isso, e me presentearam com uma bela tarde, de amadores.

Flávio Carneiro

É escritor, roteirista e professor de literatura. Autor de A confissão, entre outrosNasceu em Goiânia (GO) e mora em Teresópolis (RJ). Publicou 18 livros — romances, contos, crônicas, infantojuvenis, ensaios — e escreveu dois roteiros para cinema. Foi premiado com o Barco a Vapor e com o selo de Altamente Recomendável para o Jovem, da FNLIJ. Com Histórias ao redor (Cousa), ganhou o Jabuti 2021, na categoria crônicas. Tem contos e romances publicados em outros países, como Itália, Portugal, Colômbia, México, França, EUA, Alemanha. O conto Viva a Revolução! integra seu próximo livro, Paisagem com segredo & outras pequenas viagens, a ser lançado em breve pela Maralto..

Rascunho