Quando os personagens deixaram de ser deuses

Ao descobrir a psicologia dos personagens, Dostoiévski percebeu que ali estava o caminho da grande literatura
01/11/2013

Ao descobrir a psicologia dos personagens, Dostoiévski percebeu que ali estava o caminho da grande literatura. Por isso, em carta a um irmão, afirmou que estava provocando uma revolução na literatura — chamada por alguns críticos e estudiosos de revolução copernicana — ao trazer o personagem para o centro da narrativa. Ou seja, ao humanizar a história com personagens travando uma grande luta psicológica, revelando, sobretudo, seus fracassos e suas fraquezas.

Na verdade, até aí os personagens eram quase deuses, principalmente nas epopéias, onde os fatos e as ações eram enfatizadas, mesmo que houvesse alguma inquietação e leve reflexão, como em Dom Quixote. Por isso mesmo o livro de Cervantes é a obra inaugural do chamado romance burguês, com o homem frente ao seu próprio abismo mental. Vem daí a grande admiração que Freud tinha pelo escritor russo.

Coube a Dostoiévski, portanto, mostrar que o homem é um vulcão de sentimentos, fraquezas, zombarias, ironias e torturas — tudo dentro de um só — através dos seus monólogos entrecruzados, num mergulho que até então a literatura desconhecia (com alguma incursão no teatro grego, em obras como Édipo, embora ali os fatos ainda prevaleçam).

A leitura de Uma criatura dócil (Cosac Naify, 2013), traduzido por Fátima Bianchi, nos revela, por exemplo, as contradições dos personagens, sobretudo naquela sutil transição entre a sedução consciente e as armadilhas do ser. Na verdade, o próprio autor de Crime e castigo se mostra surpreso com as armadilhas da mente, a ponto de chamar a narrativa de fantástica, tudo porque a psicologia era pouco conhecida e estava sendo estudada de modo iniciante.

O grande autor russo se dá conta de que ali há mais matéria dramática do que podia imaginar. Surpreende-se e inquieta-se, e é isso o que revela no prefácio do livro:

Aí é que está, ele [o personagem] fala consigo mesmo, conta o ocorrido, tenta esclarecê-lo para si próprio. Apesar da aparente coerência do discurso, algumas vezes se contradiz, tanto na lógica como nos sentimentos. Ao mesmo tempo em que se justifica e culpa a mulher, deixa-se levar pelas explicações esquisitas: há nisso tanto de rudeza de pensamento e de coração como um sentimento profundo. Aos poucos consegue esclarecer para si o ocorrido e ‘concentrar os pensamentos num ponto’. Por fim, evoca uma série de recordações que inevitavelmente o levam à verdade; a verdade inevitavelmente eleva seu espírito e seu coração.

Percebe-se a imensa perplexidade do autor diante de seu personagem e da técnica utilizada para escrever esta curta — não pequena, apenas curta — novela. Ele revela, em seguida, o imenso trabalho que teve para acompanhar as reflexões do seu personagem agiota, a ponto de desejar a colaboração de um estenógrafo.

Mesmo aí, ainda não se conhecia o monólogo ou o solilóquio como técnica, tendo Dostoiévski dado os passos iniciais e cabendo a Joyce o aprofundamento, apesar das antecipações do francês Édouard Dujardin no final/começo dos séculos 19 e 20. Uma criatura dócil é, assim, uma das obras mais representativas do escritor russo, embora nem sempre citada e, muito menos, estudada.

Do ponto de vista técnico, a novela é estruturada como uma sucessão de pequenas histórias dentro de histórias, onde são ressaltadas as mudanças de humor dos personagens, de forma a transformar reflexões em ações — algo muito diferente daquilo que se vinha fazendo antes. Aqui, as reflexões são mais importantes do que os fatos, ou seja, estes são condicionados pela reflexão. Uma reflexão copernicana, com certeza. Algo que a própria literatura não costuma valorizar: a participação da técnica na obra de arte ficcional.

Os fatos são tão pouco importantes em Dostoiévski que o personagem confessa ter se envolvido num acontecimento dramático e tenebroso, mas não diz o que foi, causando mais do que uma elipse: um extraordinário abismo psicológico, que enfeitiça e seduz o leitor.

Dostoiévski conhecia tanto de técnica que adverte: “Peço desculpas aos meus leitores por lhes oferecer desta vez apenas uma novela em vez do Diário em sua forma habitual. Mas esta novela me tomou a maior parte do mês. Em todo caso, peço condescendência aos leitores”. O Diário, na forma como era apresentado na época, tratava-se de uma espécie de jornal, onde o autor refletia sobre questões do cotidiano: discutia seus sonhos, ambições e projetos ao lado dos fatos jornalísticos. Ele próprio usa a palavra “técnica” quando se refere Victor Hugo. E justifica a técnica usada em Uma criatura dócil.

NOTA
O texto Quando os personagens deixaram de ser deuses foi publicado originalmente no Suplemento Pernambuco, editado em Recife (PE). A reprodução no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

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