Personagem constrói personagem (e a história)

Em "Terras do sem-fim", Jorge Amado investiga a corrupção do humano e a inquietação do ser para entender o passo a passo das relações sociais
Ilustração: Tereza Yamashita
01/12/2020

A Estética Popular parece não suportar qualquer tipo de sofisticação. Foi assim com Jorge Amado, que recorre a técnicas profundamente inventivas e requintadas, sem assustar o leitor. É o que acontece com o “olhar do personagem”, sobretudo em Terras do sem-fim — seu romance mais ostensivamente regionalista, se é preciso algum rótulo —, em que João Magalhães se inventa e inventa a história — com cenas, cenários, diálogos, situações que se revelam dramáticas, trágicas ou irônicas. Um mundo em invenção.

É claro, Jorge Amado torna-se o criador da Estética Popular Brasileira que, em essência, procura deduzir o leitor pela simplicidade dos elementos internos, mas sem recorrer a uma extremada sofisticação vanguardista — que muitas vezes torna a obra ilegível —, tocando naquilo que o leitor reúne para conviver com a leveza da criação. Portanto, simples mas não simplório.
Além disso, no plano da linguagem, a Estética Popular convive com a gramática clássica e com a fala das ruas, a nossa própria língua sem — nem por isso — deixá-la grotesca e vulgar. Dando-se à liberdade de transgredir com a grandeza do popular e do comum.

Se em Capitães da areia o autor procura a inocência da criança com a sua natural solidariedade humana, com afeto e harmonia, em Terras do sem-fim ele investiga a corrupção do humano, a inquietação do ser para, com certeza, entender o passo a passo das relações sociais. Da convivência entre as pessoas. Estamos diante da imensa humanidade de Jorge Amado e de sua grave Estética Popular. Quem é João Magalhães, esse intrépido personagem de Terras do sem-fim, romance-chave deste autor em exame? Apresentado como engenheiro-civil, é sobretudo um capitão que não passa de um vigarista comum, a corromper mulheres, ingênuos e autoridades. Neste sentido, Amado mostra um personagem flutuando no título, mas identificado como um notório sabidão nas cenas, ou seja, na movimentação.

Logo na segunda frase do romance, como num raio, sem qualquer apresentação — mesmo que se realize aí a técnica da apresentação do personagem, ainda que ele seja o narrador oculto, cuja fala está logo na primeira frase —, o capitão João Magalhães encosta-se na amurada e vê o casario de construção antiga, as torres das igrejas, ruas e calçadas de pedras enormes.

Aí se define, por exemplo, o engenheiro civil, cujo olhar procura definir edificações e construções, elementos próprios de um engenheiro. É claro que se verificará mais tarde que, apesar do cartão de visita que distribui, o título não é verdadeiro, mas o olhar procura sedimentar o personagem, chamado depois de capitão dr. João Magalhães, engenheiro militar, com detalhes que justificam o engenheiro. É o narrador do romance quem diz que João estava naquele navio:

Depois de ter passado oito meses na Bahia, onde surgira o cacau e com ele fortunas rápidas, o anel de engenheiro no dedo, um baralho num bolso, um cento de cartões de visita no outro: capitão dr. João Magalhães, engenheiro militar. Aos poucos a tristeza de abandonar a cidade, que tanto amara naqueles oito meses, foi desaparecendo.

Neste momento, o narrador joga nos olhos do personagem a sedução do texto, acrescentando:

O navio apitou e a água respingou no chapéu de João. Ele o tirou, passou lenço perfumado pela palhinha da copa e o colocou sob o braço. Depois alisou o cabelo revolto. Propositadamente descuidado, fazendo ondas.

Em seguida recorre ao olhar, mais uma vez:

E relanceou o olhar por todo o tombadilho, indo desde o homem de preto que tinha a vista presa ao cais que já não se via, até o gordo coronel que narrava o caixeiro-viajante atos de bravura nas terras semi-bárbaras de São José dos Ilhéus. João rodava o anel no dedo, estudava a fisionomia dos outros, a vida dos outros viajantes.

Jorge Amado não só recorre ao personagem de caráter flutuante, ora capitão ora engenheiro, e em quem se descobre mais tarde um vigarista, mas utiliza, também, o narrador múltiplo, sobretudo o oculto e onisciente, não exatamente como autor de uma técnica vanguardista, mas como o criador da Estética Popular Brasileira, que lança mão dos seus recursos para enriquecer a obra.

Surge aqui o narrador onisciente que devasta o pensamento do personagem:

“Será que encontraria parceiro para uma mesinha?”

É claro que poderia evitar, bastando-lhe usar a frase seguinte:

“É verdade que levava uma bolada regular no bolso, mas dinheiro nunca faz mal a ninguém. Assoviou devagarinho.”

Continuando:

“No navio a conversa começava a se generalizar. João Magalhães sentia que não tardaria a ser envolvido pela conversa e pensava em como conseguir parceiros a bordo.”

O verbo pensar é característico do narrador onisciente.

Tirou um cigarro, bateu com ele na amurada, riscou um fósforo… Depois se interessou novamente pela paisagem, porque agora o navio ia bem próximo da saída da barra. Na frente duma casa triste de barro, dois garotos nus, de enormes barrigas, gritavam para o navio que passava. Do claro da outra casa, meio escondida pela janela, uma moça de rosto bonito acenou um adeus. João calculou que aquele adeus devia ser para o foguista ou para toda gente que ia no navio. Mas assim mesmo respondeu, estendendo sua mão magra num gesto cordial.

Percebe-se, também, que o autor usa os narradores com habilidade, utilizando ora a cena fechada, em close, interna, ora o cenário aberto, grande angular, externa, que chama de paisagem.

1. Cena fechada, em close, narrador oculto: “Tirou um fósforo, bateu com ele na amurada, riscou um fósforo”.

2. Cenário aberto, grande angular, narrador onisciente: “Na frente de uma casa triste de barro, dois garotos, de enormes barrigas, gritavam para o navio..”
O capítulo é fechado com o narrador oculto indireto. Assim, o narrador é substituído de forma a enriquecer o texto com uma nova visão, como a ilustrar a história:

O coronel gordo espantava o caixeiro-viajante narrando um barulho que tivera em uma pensão de mulheres na Bahia. Uns malandros fizeram-se de besta, queriam correr em cima dele por causa de uma mulatinha. Ele puxou o parabélum e bastou gritar: ‘Vem com coragem que eu sou é de Ilhéus…’ para que os malandros recuassem acovardados:
O viajante se assombrava com a coragem do coronel:
— O senhor foi macho pra burro…
O capitão João Magalhães foi se aproximando vagarosamente.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho