A denúncia

Como Machado de Assis utiliza a dissimulação e a ambiguidade para seduzir o leitor
Machado de Assis, autor de Dom Casmurro
06/12/2015

Todos nós sabemos — os analistas dizem até a exaustão — que Machado de Assis usava as técnicas da dissimulação e da ambiguidade para seduzir o leitor. Tudo bem, concordamos plenamente. Mas como ele faz isso? Porque no campo das artes não vale apenas o que — o que pertence ao campo das ciências — mas o como. Vamos nos deter no fantasioso III capítulo do Dom CasmurroA denúncia —, com rápida passagem pelos XI e XII capítulos — para explicar melhor o nosso ponto de vista técnico. Começa que para alcançar alto nível estético-literário — que Machado aprendeu estudando os ingleses — o “Bruxo” inscreve o Dom Casmurro no título quando o romance enfoca Capitu e Bentinho. Fernando Sabino compreendeu este aspecto com tanta clareza que reescreveu o romance com título: O amor de Capitu, sugerindo que se trata de Escobar, com dois narradores — Casmurro e Bentinho.

Mas ainda mais sedutor é o capítulo III, sempre considerado o capítulo-chave na narrativa, o que é mesmo por causa da incrível habilidade do autor em seduzir e iludir. Para não dizer mentir. Sem dúvida. Aí o narrador apresenta o tema e os personagens mais importantes do romance, com várias sugestões técnicas — que não são regras. Técnicas são apenas indicações de caminhos que reforçam a imensa qualidade dos grandes criadores, sendo Flaubert o mais competente, o mesmo Flaubert que tirou a narrativa do mero caminho linear e óbvio de contação de histórias — não devemos esquecer que Flaubert dava tanta importância às técnicas que dizia: “até um pé de coentro pode resultar num grande romance, basta observar as técnicas” —, dando-lhe a dignidade da obra de arte, numa altura que antes era dada apenas ao Poema. Assim mudou completamente a rota do romance, da novela e do conto. Flaubert é o criador do discurso indireto livre, do diálogo entrecruzado, do narrador múltiplo, do pretérito imperfeito como verbo sem tempo e espaço, e de outras técnicas sofisticadíssimas. Além disso, é incorreto chamar as técnicas de regras, são sugestões e caminhos já realizados e indicados pelos clássicos e consagrados…

Nos capítulos I e II, sobretudo e principalmente no capítulo I, o personagem narrador procura convencer o leitor, com muita ênfase, que se chama Dom Casmurro, alcunha que lhe fora dada pelo poeta do trem — Bentinho é também uma alcunha, um apelido carinhoso em família. O nome, na verdade, é Bento Santiago. No III capítulo ocorre uma sutilíssima mudança sobretudo para o leitor descuidado, preocupado apenas e meramente com a história. Deixa de ser Dom Casmurro; agora é Bentinho. Mais do que uma técnica, trata-se de um truque de mágico. Algo como dizer assim: “Não me chamem de Dom Casmurro, eu sou Bentinho”. O leitor ingênuo pode perguntar: Dom Casmurro não é Bentinho? E Bentinho não é Dom Casmurro? Como isso ocorre? Não, Bentinho não é dom Casmurro e Dom Casmurro não é Bentinho. O narrador mostra isso com muita clareza. Bentinho é um jovem ingênuo, às vezes desconfiado, peito aberto ao vento, amante, admirador da amada, e Dom Casmurro é um velho sisudo, calado, ofendido, maltratado pelas suas próprias desconfianças, azedo.

Dom Casmurro entra no romance pela voz do Próprio Casmurro, mas Bentinho aparece pela voz de outro personagem. Está escrito na abertura do capítulo em exame:

Alguns elementos podem ser observados para se examinar tecnicamente a sedução do leitor.

Ia a entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir o meu nome e escondi-me atrás da porta. A rua era a da Rua de Matacavalos, o mês novembro, o ano é que é um tanto remoto, mas eu não hei de trocar as datas à minha vida só para agradar às pessoas que não amam histórias velhas; o ano era de 1857.

— D. Glória, a senhora persiste na ideia de meter o nosso o Bentinho no Seminário? É mais que tempo, e já agora pode haver uma dificuldade.

— Que dificuldade?

Mamãe quis saber o que era. José Dias, depois de alguns instantes de concentração, veio ver se havia alguém no corredor; não deu por mim, voltou e, disse que a dificuldade estava na casa ao pé, a gente do Pádua.

— A gente do Pádua?

A sedução
Alguns elementos podem ser observados para se examinar tecnicamente a sedução do leitor. Em primeiro lugar, a sutilíssima mudança do nome Dom Casmurro que agora é Bentinho, mesmo que o leitor não perceba por distração. E o novo nome de Bentinho, que percorrerá toda a história, não foi nomeado pelo personagem-narrador, mas por outro personagem que o leitor não sabe ainda de quem se trata. Outra sutil alteração. Mais adiante, vamos perceber que Bentinho entra no romance pela voz de José Dias, o grande mau-caráter da literatura brasileira.

Mesmo assim, a grande mudança, a definitiva sedução do leitor, está no detalhe aparentemente insignificante: “José Dias, depois de alguns instantes de concentração, veio ver se havia alguém no corredor; não deu por mim, e abafando a voz…” Em princípio, é razoável dizer que “José Dias… não deu por mim…” porque o menino estava “atrás da porta”, conforme diz no começo do capítulo. Mas esta é a verdade? É verdade que Bentinho está atrás da porta?

Machado de Assis, através do narrador, faz um jogo em segundos: Bentinho — e não Dom Casmurro, embora o leitor confunda as coisas, com leveza e simulação — Sim, até aí é a verdade, mas Bentinho não ficou para ouvir a conversa, esta conversa que é definitiva para o romance — Dom Casmurro conta, mas Bentinho fugiu. E fugiu só por um instante, porque Dom Casmurro some definitivamente. O que estabelece a ambiguidade narrativa de Machado neste romance é este jogo do duplo — Dom Casmurro/Bentinho. No capítulo XI, o personagem-narrador afirma: “Tão depressa vi desaparecer o agregado no corredor deixei o esconderijo, e corri à varanda ao fundo…”

Aí está a chave do romance. Bentinho não ouviu aquela conversa em que Capitu é apresentada como uma menina desmiolada, que carregava o menino angelical para os cantos da casa. Ele corre para a “varanda ao fundo” e ouviu, lá de longe, apenas murmúrios, falas desencontradas, palavras soltas, como está escrito também no XI capítulo:

Parei na varanda; ia tonto, atordoado, as pernas bambas, o coração parecendo querer sair-me pela boca fora. Não me atrevia descer à chácara e passar ao quintal vizinho. Comecei a andar de um lado a outro, estacando para amparar-me; e andava outra vez e estacava. Vozes confusas repetiam o discurso de José Dias:

“Em segredinhos…”

“Sempre juntos…”

“Se eles pegam de namoro…”

Fica evidente, portanto, que Machado estava consciente de sua estratégica técnica — sendo metade Dom Casmurro, a outra metade Bentinho.

Esta é uma estratégia curiosa porque se percebe, com facilidade, que o personagem-narrador usa o III capítulo como uma espécie de tribunal de Família para acusar Capitu, e para demonstrar que aos 15 anos a menina tinha hábitos dissolutos, sobretudo para a época da história.

Nunca concordamos em chamar de mentira a estratégia do narrador para seduzir o leitor, embora ela esteja bem presente. O narrador sutilmente muda o nome do personagem de Dom Casmurro para Bentinho, nomeado pela voz de outro personagem: o José Dias — e se esconde atrás da porta mas logo corre para a varanda ao fundo. O que demonstra, com clareza, que ele não ouviu a conversa — decisiva para o romance.

Além disso, temos aí um dado importantíssimo: neste momento, Dom Casmurro desaparece, fisicamente, do romance para só retornar no capítulo 145, fim do livro, segundo afirmação do próprio personagem. Nesse capítulo, ele recebe a visita do filho Ezequiel, que julga ser filho de Escobar e Capitu. A princípio não quer recebê-lo. Depois decide ir ao seu encontro na sala. Assim está escrito no capítulo 145: “Quando saí do quarto, tomei ares de pai, um pai entre manso e crespo, metade Dom Casmurro”.

Estratégia
Fica evidente, portanto, que Machado estava consciente de sua estratégica técnica — sendo metade Dom Casmurro, a outra metade Bentinho. Claramente a técnica do duplo, que a psicanálise tanto conhece e estuda.

Naquele instante inicial, Dom Casmurro saiu da narrativa, cedendo lugar a Bentinho. Agora Dom Casmurro volta — não é sem motivo que o capítulo 145 chama-se O regresso, dando a entender que é o regresso de Ezequiel. Tudo dentro da dissimulação, da ambiguidade e da sedução de Machado. Genial, é claro. Machado é tudo isso, sem dúvida. Mas cabe ao estudioso da narrativa descobrir o como, a maneira de construir um romance um conto, uma novela. Não basta dizer que Machado é Bruxo, tem que descobrir a bruxaria para que o estudante ou iniciante possam também descobrir seus caminhos, palavra por palavra. É um caminho, não único e excludente, mas necessário e apaixonante.

Retornamos ainda ao III capítulo para demonstrar que também, habilmente, sutilmente, Machado dispensa o narrador aí para que os personagens tenham autonomia e não só conduzam, mas organizem a narrativa.

É José Dias, ainda inominado, quem traz d. Glória e Bentinho para a narrativa, enquanto apresenta Capitu, não pelo nome, sequer pelo apelido que carregará pelo romance afora, mas por uma referência depreciativa — e aí já começa a desclassificá-la: “A filha do Tartaruga”. Feito quem diz: “Aquela sem nome”, que nem merece ter um nome; um pouco mais adiante acrescenta: “A pequena é uma desmiolada”. Trata-se de uma menina de 14 anos e o leitor conhece, enfaticamente, como alguém desprezível. A partir daí o leitor passa a fazer parte deste Tribunal que julga Capitu…

Glória, que defende a menina, mesmo sem ênfase, pede a ajuda do Mano Cosme, que passa a ser o advogado de defesa, com um acanhado: “Mano Cosme, você que acha?”.

Mais adiante todos terão direito a, pelo menos, um capítulo para apresentação narrativa, o que leva a uma digressão longa a distanciar todo o centro narrativo. Prima Justina é chamada pelo Mano Cosme: “Você que acha, prima Justina?”.

Sem dúvida, obra de um ilusionista que seduz o leitor pela estratégia dos “elementos essenciais da narrativa”, segundo a expressão de Graciliano Ramos.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho