Cartas portuguesas

Correspondência de uma jovem freira a seu amado francês versa sobre os gozos e sofrimentos do amor
Ilustração: Eduardo Souza
01/02/2024

1.
O belo edifício gótico-manuelino de Beja, pleno Alentejo, Portugal, constituído por igreja e claustro, outrora o feminino e Real Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição, hoje abriga um museu bem cuidado. O visitante logo descobre que a arquitetura exterior esconde a dramática ornamentação dos altares, com seus retábulos e colunas cobertas por talhas fulgurantes. Tudo brilha e canta a euforia de pertencer à grei das tocadas pela Graça. Nesse mosteiro, em 1651, à força, ingressou uma pré-adolescente que ali ficaria o resto de sua longa vida, tornando-se abadessa. Chamava-se Mariana e pertencia à poderosa e culta família Alcoforado. Isso é o que sabemos.

2.
A oposição entre o exterior e o interior do prédio pode servir de imagem da contraposição entre o rigoroso hábito conventual de Mariana e sua sensibilidade erótica em chamas, a qual encontrou seu sujeito na figura do oficial francês que passou a cavalo frente à sua janela: tratava-se de Noël Bouton de Chamilly, então a serviço em Portugal. Apaixonaram-se, encontraram-se, viveram toda a intensidade que pode ter o amor. Logo foram descobertos, deu-se o escândalo, e Chamilly foi obrigado a voltar para a França. Há variantes nos pormenores dessa história, mas na essência isso aconteceu.

3.
O que poderia pertencer apenas à crônica galante do século 17 europeu resultou numa autêntica obra literária, constituída por cinco missivas escritas por Mariana e destinadas a Chamilly. Nelas, recorda os momentos de paixão e lamenta a sorte. Por caminhos incógnitos, saíram publicadas na França, em 1669 — Mariana com 29 anos — sob o título de Lettres Portugaises, Cartas portuguesas, sem indicação da autoria nem do destinatário. Foi tal o sucesso, que logo saiu uma segunda edição, já com o nome de M. de Chamilly na folha de rosto.

4.
Abandonemos a verdade, que pode não o ser por inteiro, e fiquemos no conteúdo, este sim, indiscutível. Sob o aspecto das intenções, é raro que uma obra tão antiga — para nós — apresente lancinantes declarações de amor dentro do espírito corrente no século 19 e nas mensagens de WhatsApp adolescentes de hoje.

5.
Já pensando topograficamente, trata-se de um conjunto de cinco cartas, em que as três primeiras versam sobre os gozos e sofrimentos do amor e algumas esperanças, e, as duas últimas, tratam da desgraça do abandono. Se o estilo ainda traz vestígios da sintaxe barroca, com suas inversões sintáticas e argumentações enviesadas, já o sentimento é totalmente romântico, em seu viés sentimental.

6.
Embora tenhamos as cartas que ela escreveu, delas mesmas consta que o oficial lhe havia enviado duas ou três, das quais ela reclama o espaçamento, a brevidade e o tom. Estamos perante um diálogo assimétrico, no qual Mariana deve desembaraçar-se de qualquer expectativa de receber resposta, assim que há um vocativo, um “tu” ausente e mudo, uma autêntica parede de lágrimas e, às vezes, imprecações cruéis de pessoa abandonada.

7.
Há uma ideia seminal de Roland Barthes, em Fragmentos de um discurso amoroso: só é verdadeira a afirmativa “eu te amo”, escrita assim, no presente do indicativo. As demais são meras decorrências, expressas no passado ou no futuro, e que que se situam no plano das reiterações, inversões, deduções, induções; enfim, jogos retóricos que, de tanto repetidos, acabam na vala comum dos clichês. E os clichês, como sabemos, estão encostados no humor. Disso nos lembra Fernando Pessoa, [Álvaro de Campos]: “As cartas de amor, se há amor,/ Têm de ser/ Ridículas”. Nossa inteligente freirinha de Beja não deseja escapar dessa rede de lugares-comuns, mas atenção: ela foi a primeira a usá-los em sua versão moderna, isto é, há uma identidade entre autora e escritora. Veríamos acontecer esse tom literário apenas cem anos mais tarde, em Os sofrimentos do jovem Werther, já sob outra estética, claro, e a primeira pessoa é mero recurso focalizador.

8.
A relação entre o oficial e Mariana foi brava e carnal: “Terá sido então inútil todo o meu desejo, e não voltarei a ver-te no meu quarto com o ardor e arrebatamento que me mostravas? Ai, que ilusão a minha! Demasiado sei eu que todas as emoções, que em mim se apoderavam da cabeça e do coração, eram em ti despertadas unicamente por certos prazeres e, como eles, depressa se extinguiam”. Quer dizer: amaram-se de maneira inventiva, o que levava a “certos” prazeres que só podemos imaginar quais seriam. Essas novidades eróticas tiveram imensa repercussão em Mariana: “Precisava, nesses deliciosos instantes, chamar a razão no meu auxílio para moderar o funesto excesso da minha felicidade e me levar a pressentir tudo quanto sofro presentemente. Mas de tal modo me entregava a ti, que era impossível pensar no que pudesse vir envenenar a minha alegria e impedir de me abandonar inteiramente às provas ardentes da tua paixão”.

9.
Ao lado disso, há momentos de sofisticada sensibilidade: “Amo-te de tal maneira que nem ouso sequer desejar que venhas a ser perturbado por igual arrebatamento”. É uma filigrana da alma, pois impõe uma reflexão que implica o sentimento atual da empatia, especialmente se aposta ao ser amado. Quer-se dizer: Mariana modulou todas tonalidades de sua alma, que incluem ainda chantagem, egoísmo, autopunições, ciúmes, francas ameaças: “Ai!, porque não queres passar a vida inteira ao pé de mim? Se me fosse possível sair deste malfadado convento, não esperaria em Portugal pelo cumprimento da tua promessa: iria eu, sem guardar nenhuma conveniência, procurar-te, e seguir-te, e amar-te em toda a parte”.

10.
Mariana Alcoforado é um exemplo de ser humano completo, que, em determinado ponto da vida, deixou-se apaixonar, entregando-se de corpo e alma ao desespero. A maneira que encontrou para elaborar todo esse tumulto interior não esteve longe da cura pela palavra, de que tanto fala o Dr. Freud. Sob o aspecto literário, Cartas portuguesas nos mostra que o romantismo, antes de ser o movimento estético datado, é um viés que está presente na literatura em diferentes estágios da cultura, variando apenas o modus como se expressa. Por ter a coragem de expressar todo seu universo inflamado, e com intensa literatura, este livro vai para nossa mochila.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

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