1.
A história das narrativas literárias apresenta temas recorrentes, ao sabor do topo literário a que pertencem; um dos mais raros é a escrita de prisioneiros, reais ou ficcionais. Embora poucos, alguns se tornaram célebres, como o De profundis, de Oscar Wilde, ou O túnel, de Ernesto Sabato, que já comentamos nesta coluna. Agora pensaremos em A confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro. Os dois últimos envolvem crimes de morte, narrados em primeira pessoa pelo próprio criminoso, e têm os inícios praticamente os mesmos.
2.
Sá-Carneiro é bastante conhecido em Portugal, notadamente como grande poeta e colaborador da famosa revista Orpheu, o berço do Modernismo luso; foi amigo íntimo de Fernando Pessoa (há pelo menos duas expressivas fotos em que ambos aparecem juntos), de que resultou uma extensa correspondência (quase sempre Sá-Carneiro em Paris e Pessoa em Lisboa). Até aqui temos um excelente autor, digno de pertencer ao cânone modernista de seu país; as biografias mais recentes acrescentam sua homossexualidade e, por fim, seu teatral suicídio aos 25 anos. As cartas a Fernando Pessoa são bastante simples, quase sumárias, mas há uma (num cartão-postal) em que propõe um enigma sombrio: “Paris, 22 Fev. 1916: Tudo isto, porém, há de ter um fim — e eu pergunto-me [sic] que lugar irei preencher nesse fim”.
3.
Tendo em vista essas circunstâncias, ultimamente o público leitor considera-o um “autor maldito” (à Verlaine, Baudelaire, Sade, Kerouac etc.), pois escreve, já em 1914, uma literatura confessional, não corrente num país que mal saía do período monárquico, ainda fortemente atado a uma moralidade clerical e repressiva. A confissão de Lúcio foi a eclosão do “eu” de um escritor que se expressava com liberdade, não se importando o que pensassem e as associações que fizessem entre personagem/autor.
4.
Esses últimos dados, que podem pertencer aos domínios extraliterários, ou, até irrelevantes, são, contudo, significativos para — sem incorrer na discutível crítica biográfica — entender melhor Lúcio, a personagem do título e central da novela. Para já, é contada em primeira pessoa, o que permite o conhecimento psicológico aprofundado da personagem, que apresenta uma questão essencial (portanto, pré-narrativa, “pré-histórica”) fraturada, múltipla, canhestra para enfrentar as situações da vida, vítima de intensa misantropia, com uma sexualidade complexa, fantasista e temerosa, apresentando tendência a devaneios com a morte. É obra, convenhamos, criar uma personagem com tantas circunstâncias, pois estas serão responsáveis por “criar” a narrativa, atribuindo à mesma personagem as ações e reações próprias para um enredo que faça sentido. E o enredo, aqui, está no título e no início: “Cumpridos dez anos de prisão por um crime que não pratiquei e do qual, entretanto, nunca me defendi; morto para a vida e para os sonhos; nada podendo já esperar coisa alguma desejando, eu venho enfim fazer a minha confissão; isso é: demonstrar a minha inocência”. Esse programa literário é excepcional para uma personagem com tantas ambiguidades, pressupondo técnica e sentido de compreensibilidade da linguagem. Talvez por isso Sá-Carneiro tenha escolhido um léxico e uma sintaxe adequadas à personagem, um escritor culto, mas deixando-a plausível para o leitor habitual (sem ignorar que qualquer pessoa que pegue um livro para ler terá uma dose não desprezível de formação escolar).
5.
A ação se passa no final da Belle Époque, impregnada de forte sentimento da decadência, e isso se expressa numa festa oferecida por uma “americana fulva” e milionária, em que, à guisa de arte musical-performática, iluminada por holofotes elétricos, representa-se uma ação de nudismo, dança frenética, fogo, malabarismos eróticos, quedas numa piscina azul, cores cambiantes e histéricas que atordoam Lúcio, o qual fora convidado sem saber em que se metia. Junto estava Ricardo de Loureiro, um encontro inesperado: “… que poderia valer a noite fantástica em face do nosso encontro, desse encontro que marcou o princípio da minha vida? Ah, sem dúvida, amizade predestinada, aquela que começava num cenário tão estranho, tão perturbador, tão dourado…”.
6.
Por aqui se vê a mestria construtiva de Sá-Carneiro, que cria o espaço (esse item tão negligenciado pelos ficcionistas) não como um banal cenário, mas como agente deflagrador de uma situação crítica que, atuando com a questão essencial da personagem, acaba gerando o enredo e o conflito. É por essas decisões, na aparência casuais, que se conhece a boa narrativa. Quem tem a paciência de acompanhar alguns de meus escritos, sabe que sempre privilegiei a personagem como o verdadeiro motor da ficção. Se Lúcio não tivesse aquele conjunto de elementos feéricos dentro, de si e desde sempre, a obscenidade da arte-orgia da americana atiçaria reações pontuais de agrado-desagrado, mas, no caso, faz eclodir o que verdadeiramente importa, a novela e seu propósito.
7.
O enredo (atenção: para o bom leitor, o spoiler é uma homenagem à sua inteligência) mostra situações típicas das narrativas do período; Ricardo desaparece, volta casado com Marta; tornam-se unidos, os três. Durante esse idílio amical, Lúcio vê-se seduzido por Marta, com a complacência, senão o estímulo, de Ricardo. Marta trai Ricardo com Lúcio, e este se indigna de como o amigo não “faz nada”. Aqui o nó da novela, que, a partir da complexidade interior de Lúcio, transforma um banal caso de infidelidade, tão versada na literatura, num sutil jogo homoerótico. A atração de Lúcio por Ricardo, antevista em dezenas de situações pregressas, e a atração de Ricardo por Lúcio, desencadeia uma tragédia de transferências afetivas, em que o pivô, aparentemente, é a mulher. É sim, ela, mas não do modo que se possa pensar.
8.
No auge da traição, Ricardo, enfim, vai às contas com Lúcio: “— Vamos ver! Vamos ver… chegou a hora da dissipar os fantasmas… Ela é só tua! É só tua… hás-de me acreditar!… Repito-te: foi como se minha alma, sendo sexualizada, se materializasse para te possuir… Ela é só minha! Só minha! Só para ti a procurei… Mas não consinto que nos separe… Verás… Verás!…” Pronto. Ricardo pega uma arma e, junto de Lúcio, sobe ao quarto da esposa, ela está lá, acontece um tiro, Marta desaparece de cena, Ricardo jaz estendido no chão, e o revólver fumegante acaba aos pés de Lúcio que, como sabemos, aceitou a inculpação de assassinato. O principal não é quem matou ou se matou, mas sim a sutileza com que Sá-Carneiro instaura uma teia de amor a três e um deslocamento erótico que, em certo ponto, se torna insuportável pelo que tem de interdito. Difícil encontrar tal nível de nuances. A confissão de Lúcio, por ser tão maior do que aparenta, a exigir um leitor de entrelinhas, merece estar em nossa mochila de canônicos.