Modelos de esquizofrenia produtiva

Na época de Hume e Kant o texto impresso constituía o meio de comunicação de massas por excelência
David Hume, filósofo, historiador e ensaísta britânico
30/08/2019

Hume
Um passo atrás para melhor transformar o contemporâneo: antes do fenômeno da especialização discursiva, característico da segunda metade do século 18, e reforçado após o surgimento da moderna concepção de universidade, no início do século seguinte, os filósofos preocupavam-se em atingir um público mais amplo do que seus próprios pares.

Mencionarei apenas dois exemplos, porém expressivos.

Ao publicar sua obra-prima, Tratado da natureza humana (1739-1740), David Hume, com apenas 26 anos, surpreendeu-se com a absoluta indiferença do público inglês. Afinal, a hipótese central de sua obra, relativa à noção de causalidade, deitava uma pá de cal sobre as pretensões então dominantes do pensamento metafísico. Hume simplesmente negava o conceito tradicional de causalidade, segundo o qual o evento-causa “A” provoca um resultado, no caso, o evento-efeito “B”. Tal conceito supõe a existência de uma conexão necessária entre os dois acontecimentos. O filósofo escocês questionou essa crença, sugerindo que a ideia de uma conexão a priori entre fatos distantes no tempo representava somente a naturalização de hábitos cotidianos. Em outras palavras, o fenômeno que induz à ideia de uma causalidade intrínseca aos eventos é o costume de relacionar eventos que se sucedem no tempo. Assim, atribui-se ao primeiro evento a causa necessária da ocorrência do segundo evento, que passa a ser considerado como o efeito inevitável daquele. Porém, defendia Hume, tal noção de fato não pode ser comprovada, trata-se simplesmente da força de um hábito arraigado e do qual não se deseja (ou não se pode) abrir mão. A noção de causalidade, portanto, é uma ficção conveniente, indispensável para assegurar a fluência do comércio cotidiano, mas insuficiente do ponto de vista de uma crítica rigorosa do conhecimento. Ora, se o conceito de causalidade é apenas um hábito que repetimos como se fosse uma segunda natureza, como oferecer respostas às questões propriamente metafísicas? Sem a possibilidade de estabelecer elos necessários entre eventos distantes no tempo, como fundamentar afirmações sobre a existência de Deus, a imortalidade da alma, a natureza última do tempo e do espaço?

Sem dúvida, Hume tinha boas razões para crer que o Tratado da natureza humana despertaria polêmicas calorosas. Ele havia inclusive preparado engenhosos argumentos para responder às objeções que supunha seriam numerosas. Contudo, nesse caso, o silêncio foi quase unânime e talvez a resposta mais eloquente ao desafio lançado pelo jovem filósofo. Uma incômoda pergunta tornou-se urgente: “De que modo compreender a indiferença dos leitores?”. Se fosse um professor universitário lamuriento, o filósofo escocês atribuiria o descaso à ignorância dos leitores ou à precariedade da vida cultural. Hume, porém, tomou outro caminho. Ele abreviou o texto e sobretudo modificou seu estilo, a fim de ampliar a repercussão de suas ideias. O pensador escocês preferiu reescrever seu tratado e, assim, em 1748, veio à luz Investigação sobre o entendimento humano. Vale assinalar a importância do gesto: é possível apresentar um complexo argumento recorrendo a formas distintas de linguagem. A diferença procura dar conta da existência de públicos igualmente diversos — eis o que denomino esquizofrenia produtiva.

A iniciativa de Hume foi recompensada e mesmo adotada por outros pensadores.

Kant
Refiro-me a um filósofo alemão, profundamente influenciado pela leitura da obra de Hume. Em 1770, Immanuel Kant familiarizou-se com suas teses, detendo-se com especial cuidado na devastadora crítica da ideia de causalidade. O impacto foi profundo e Kant passou os próximos 11 anos sem publicar texto algum. O filósofo escocês havia literalmente retirado o chão sobre o qual Kant apoiava suas conjecturas. Na célebre recordação desse período de leituras e surpresas, ele reconheceu: “Hume despertou-me de meu sono metafísico”. No longo interregno reflexivo, amadureceu a resposta à obra de Hume, compondo sua obra-prima, A crítica da razão pura, lançada em 1781. Como se estivesse destinado a seguir os passos do escocês, a recepção à primeira Crítica foi modesta, na verdade, quase inexistente. Os poucos leitores foram unânimes em considerar a escrita kantiana uma “selva selvagem”, composta de intricados conceitos e espessas abstrações. E, nesse caso, sem a orientação de guia algum. De igual modo, o filósofo alemão não hesitou em apresentar uma versão condensada e, no fundo, mais acessível de sua obra maior. Assim, se a recepção às noções apresentadas na primeira Crítica foi limitada, Kant esperava obter maior êxito na difusão de sua doutrina numa versão muito reduzida e sobretudo numa linguagem muito mais clara. Por isso, em 1783, publicou Prolegômenos a toda metafísica futura.

Além desse esforço de reescrita da própria obra, Kant estimulou seu amigo, Johann Schultz, pastor e professor de matemática em Königsberg, a redigir um breve comentário à Crítica da razão pura. O pastor foi fiel ao desejo do amigo e, em 1784, publicou o livro com o sugestivo e reverente título Esclarecimentos sobre A Crítica da razão pura do senhor professor Kant. Na véspera da publicação do manual, um agradecido Kant enviou uma reveladora carta ao pastor:

Sinto uma alegria especial em saber pelo sr. Dengel que seu completo e ao mesmo tempo popular livro sobre a Crítica está pronto para publicação. Tinha a intenção de colocar a sua disposição determinadas sugestões, que talvez tornassem meu livro de mais fácil apreensão (…).[1]

Provavelmente estimulado pelo entusiasmo do filósofo, o matemático levou a sério a empresa de divulgar a filosofia transcendental kantiana e cinco anos depois publicou um novo manual — Exame da crítica kantiana da razão pura. Em 1784, aliás, mesmo ano de lançamento do primeiro livro de Schultz acerca da filosofia transcendental, Kant escreveu um de seus ensaios mais célebres, Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung? (Resposta à pergunta: O que é o Iluminismo?). O ensaio foi publicado na revista Berlinische Monatsschrift, uma publicação mensal destinada a um público amplo e não a um círculo restrito de especialistas. No fundo, elaborei o conceito de esquizofrenia produtiva a partir da distinção entre os usos “público” e “privado” da razão, ponto central do argumento kantiano nesse artigo. Ademais, sua escrita revela com clareza o caráter bifronte da produção do filósofo alemão. Ou seja, ele tanto redigiu tratados filosóficos de difícil penetração e de leitura praticamente exclusiva de seus pares, quanto produziu ensaios críticos numa linguagem mais acessível, a fim de alcançar o cidadão “comum”. Tal estratégia era coerente com a utopia iluminista de difusão da capacidade de pensar por conta própria como a definição mais exata de cidadania. Em ambos os casos, Kant nunca abriu mão do sentido reflexivo e crítico de suas intervenções.

Eis aí o modelo do intelectual que aprende a tornar-se bilíngue em seu idioma — se não me equivoco, mais do que nunca precisamos recuperar essa lição. Afinal, a midiatização de certos intelectuais nada tem a ver com a esquizofrenia produtiva, pois apenas dilui a reflexão crítica com as promessas efêmeras da cultura da celebridade.

Na época de Hume e Kant o texto impresso constituía o meio de comunicação de massas por excelência; daí sua preocupação em difundir sua reflexão tanto através da reescrita de seus próprios livros, quanto por meio de textos produzidos para jornais e revistas. Hoje, pelo contrário, os meios de comunicação audiovisuais e digitais constituem a forma por excelência de uma circunstância desauratizada.

Hoje?
Já passou da hora de encarar os meios de comunicação audiovisuais e digitais como um idioma novo que necessitamos com urgência dominar.

(Não é verdade que em todo o mundo o avanço da direita e especialmente da extrema-direita se relaciona com a fluência com que aprenderam a soletrar o alfabeto do universo digital?)

[1] Immanuel Kant. Philosophical Correspondence, 1759-99. Traduzido por Arnulf
Zweig. Chicago: Chicago University Press, 1967, p. 111. A carta foi enviada em 17 de fevereiro de 1784.

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

Rascunho