Literatura do subúrbio do mundo?

No artigo deste mês, proponho ao leitor uma reflexão que permita resgatar afinidades estruturais caracterizadoras da circunstância cultural latino-americana.
01/05/2013

Estratégias, não essências
No artigo deste mês, proponho ao leitor uma reflexão que permita resgatar afinidades estruturais caracterizadoras da circunstância cultural latino-americana.

(Ou, para dizê-lo com sabor teórico, pretendo evidenciar elementos definidores das literaturas não hegemônicas — e isso em qualquer latitude, bem entendido.)

De fato, tal preocupação define o projeto desta coluna. As vicissitudes latino-americanas não são únicas, tampouco unívocas, mas, pelo contrário, relacionam-se a dilemas similares aos de outras regiões culturais. Trata-se, em primeiro lugar, de reconstruir o processo mais amplo de mundialização, dominante a partir do final do século 15.

Portanto, o vocabulário ontológico de uma hipotética essência latino-americana deve ser substituído pelo propósito de identificação de procedimentos estratégicos, cuja finalidade é dar conta das crescentes assimetrias impostas pela articulação do sistema-mundo.[1]

Afinidades estruturais
Começo recordando o impasse vivido por Domingo Faustino Sarmiento em seu exílio no Chile, nos anos de 1840. Como conquistar leitores para El Progreso, jornal fundado pelo argentino, se os demais, europeus e norte-americanos, também se encontravam disponíveis e, na verdade, chegavam antes a Santiago do Chile? Compreenda-se o embaraço: Sarmiento compunha boa parte do conteúdo de El Progreso compilando artigos de veículos estrangeiros. Ora, como rivalizar com periódicos cujas notícias são sempre “mais atuais” e cujos pontos de vista costumam determinar a opinião dos leitores? Por que aguardar a seleção de notícias e a transcrição de artigos de fundo, se o público tinha acesso aos textos na língua original, dispensando a tradução?

A resposta de Sarmiento é exemplar, revelando o elemento estrutural que importa destacar:

(…) nosso diário supera os mais conhecidos da Europa e da América, pela razão muito óbvia de que, sendo um dos últimos jornais do mundo, temos à disposição, e para escolher da melhor maneira, o que os demais publicaram.[2]

Ao ler a réplica espirituosa de Sarmiento, o leitor provavelmente pensou na obra de Oswald de Andrade. E tem razão, o recurso retórico é vizinho à antropofagia, pois o que pertence ao outro se transforma em matéria própria, fundamento indispensável. Na fórmula definitiva: “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”.[3]

De igual modo, na busca de afinidades estruturais, mencione-se um artigo praticamente desconhecido do jovem Gabriel García Márquez, “Possibilidades da antropofagia”. Publicado em 1950 — mesmo ano em que Oswald de Andrade concluiu A crise da filosofia messiânica, ensaio no qual aprofundou as consequências do canibalismo cultural —, o texto de García Márquez caminha na mesma direção:

A antropofagia daria origem a um novo conceito da vida. Seria o princípio de uma nova filosofia, de um novo e fecundo rumo das artes.[4]

Machado de Assis, consumado canibal do alheio, já havia intuído a mesma dimensão inventiva do gesto antropofágico, subjacente à assimilação crítica de tradições diversas. Sua crônica de A Semana, de 1° de setembro de 1895, discutiu supostos casos de canibalismo, ocorridos na Guiné e no interior de Minas Gerais. A conclusão poderia ser assinada por Oswald ou García Márquez:

Estribilhos são muletas que a gente forte deve dispensar. Quando voltar o costume da antropofagia, não há mais que trocar o “amai-vos uns aos outros”, do Evangelho, por esta doutrina: “Comei-vos uns aos outros”. Bem pensado são os dois estribilhos da civilização.[5]

Sobretudo na arte e no pensamento.

(Ou alguém ignora que a emulação é a forma mais sofisticada de elogio?)

Daí, a recorrência do tema ilumina o alvo: a necessidade de desenvolver estratégias para lidar com a presença constitutiva de um modelo, aceito como autoridade e, por isso mesmo, adotado como fonte de autodeterminação. O paradoxo implícito na sentença constitui verdadeiro Leitmotiv na definição das culturas latino-americanas.[6]

Ademais, a atitude de Sarmiento sugere que estar sempre à frente pode ser um obstáculo intransponível: quem ocupa tal posição, nada tem diante dos olhos. Pelo contrário, a posição retardatária do editor de El Progreso assegurou uma vantagem impremeditada: tudo se encontra diante de seus olhos, como itens de um generoso cardápio, cujo horizonte desenha uma nova forma de entender o pensamento e a arte em circunstâncias não hegemônicas.

Defunto autor avant la lettre, Sarmiento não precisou esperar pela campa para viver o delírio de Brás Cubas. Pressionado por condições objetivas que não podia alterar, relacionadas à concretude de relações políticas e econômicas desiguais, ele inventou uma maneira subjetiva de enfrentar o óbice, a seu modo retornando à origem dos séculos. Afinal, nas palavras de Sarmiento, no universo da estética e da filosofia, os últimos, às vezes, podem ser os primeiros, selecionando do conjunto da tradição os elementos que lhe interessam mais diretamente.

Reitere-se, porém, o elemento mais importante: trata-se de uma potência, que exige um gesto deliberado para sua atualização.

Sarmiento e Machado?
Uma pergunta se impõe: não será artificial o vínculo que proponho entre Machado e Sarmiento? Ainda hoje é quase inexistente o diálogo entre cultura brasileira e mundo hispano-americano. Contudo, a associação com o autor de Facundo é favorecida por artigo publicado na Gazeta de Notícias, em 9 de julho de 1888. Nele, Machado rememora seu (quase) encontro com o escritor.

Quando hoje contemplo o rápido progresso da nação argentina, recordo-me sempre da primeira e única vez que vi o Dr. Sarmiento, presidente que sucedeu ao General Mitre no governo da República.

Foi em 1868. Estávamos alguns amigos no Club Fluminense, Praça da Constituição, casa onde é hoje a Secretaria do Império. Eram nove horas da noite. Vimos entrar na sala do chá um homem que ali se hospedara na véspera. Não era moço; olhos grandes e inteligentes, barba raspada, um tanto cheio. Demorou-se pouco tempo; de quando em quando, olhava para nós, que o examinávamos também, sem saber quem era. Era justamente o Dr. Sarmiento, vinha dos Estados Unidos, onde representava a Confederação Argentina, e donde saíra porque acabava de ser eleito presidente da República. Tinha estado com o Imperador, e vinha de uma sessão científica. Dois ou três dias depois, seguiu para Buenos Aires.

A impressão que nos deixara esse homem foi, em verdade, profunda. Naquela visão rápida do presidente eleito pode-se dizer que nos aparecia o futuro da nação argentina.[7]

A cena é pura ficção: Machado e seus amigos olham curiosos para Sarmiento.

O argentino devolve os olhares, igualmente intrigado.

No entanto, não chegam a trocar sequer duas palavras.

Ou talvez não. Sem sabê-lo, Machado e Sarmiento dialogaram muitas vezes. Em suas obras, elaborando uma saída para tornar produtiva a circunstância política que não podiam alterar.

(Diálogos similares multiplicam-se: basta saber procurá-los.)

O subúrbio do mundo é aqui?
No século seguinte, por exemplo, outro argentino reformulou a pergunta de Sarmiento. Nos termos propostos por Ricardo Piglia, em seu estudo do romance de Witold Gombrowicz, o fantasma da secundidade retorna:

O que acontece quando se pertence a uma cultura secundária? O que acontece quando se escreve numa língua marginal? (…) Aqui Borges e Gombrowicz se aproximam. Basta pensar num dos textos fundamentais da poética borgiana: O escritor argentino e a tradição. O que quer dizer a tradição? (…) Como chegar a ser universal neste subúrbio do mundo?[8]

Essas questões — e não seria difícil acrescentar um colar de citações semelhantes — ajudam a definir o alcance da reflexão que proponho. Reitere-se que ela nada tem a ver com uma desatualizada ontologia do periférico, pois alude a uma situação concreta de desequilíbrio nas trocas culturais. Não se trata de identificar uma essência — algum fluido misterioso que tornaria o “ser periférico” singular e sempre idêntico a si mesmo —, porém de aprimorar uma estratégia necessária, dada a assimetria constitutiva das trocas simbólicas. Ao contrário do que muitos supõem, esse não é um problema tornado obsoleto pelas condições contemporâneas.

Por isso, é sintomática a insistência no mesmo campo semântico em autores os mais diversos. No conto de Milton Hatoum, Encontros na península, um jovem escritor brasileiro, em situação precária, tem a sorte de encontrar uma catalã que deseja aprender português com alguma urgência. A razão era peculiar: “Não quero falar, ela disse com firmeza. Quero ler Machado de Assis”.[9] Tratava-se de vingança tardia: Victoria Soller, a disciplinada aluna, terminara o relacionamento com o lisboeta Soares, cuja obsessão era provar a superioridade da literatura de Eça de Queirós. De forma previsível, a catalã termina por discordar do ex-amante. Surpreendente, porém, é que o diálogo com o professor reitera a dúvida de Ricardo Piglia:

Já se vê que os narradores de Machado são terríveis, irônicos, geniais. E o homem era de fato culto. Cultíssimo, verdad? O século 19 francês é pródigo de grandes prosadores. Mas como Machado de Assis pode ter surgido no subúrbio do mundo?

Mistérios de subúrbio, eu disse. Ou, quem sabe, da literatura do subúrbio(p. 105, grifos meus).

Piglia e Hatoum coincidem numa fórmula inquietante: literatura do subúrbio do mundo. Como compreendê-la?

Adapte-se, com certo otimismo, a fórmula de Sarmiento: se os últimos podem metamorfosear-se em inesperada vanguarda, a literatura do subúrbio do mundo pode transformar-se no centro da cultura?

Porém, devagar com o andor: centro de assimilação sistemática de tradições diversas. Literaturas escritas em português e espanhol sofrem de autêntica “angústia da ilegibilidade”, isto é, sua respiração artificial é o “imperativo da tradução”, condição indispensável para serem mais bem conhecidas.

(É preciso driblar o constrangedor elogio do atraso.)

Ao destacar a tensão entre culturas hegemônicas e não hegemônicas, refiro-me à existência concreta de literaturas favorecidas por determinada circunstância histórica que beneficia esta ou aquela língua na difusão de obras. A “universalidade” deste ou daquele autor depende mais do idioma no qual escreve do que da qualidade intrínseca de sua obra. Assim, se nos séculos 18 e 19 o francês foi a língua franca da utópica República das Letras, nos séculos 20 e 21 o inglês assumiu o papel de coiné do universo letrado (e digital). Autores que escrevem em inglês, ou ainda em francês, têm uma probabilidade muito maior de ocupar o centro do cânone, já que escrevem no idioma de uma cultura que ocupa posição central nas relações de poder — aqui, como se percebe, a redundância se impõe.

Europeísta: um projeto?
À guisa de conclusão, recordo a prosa precisa de Ernesto Sábato: “Os europeus não são europeístas; são simplesmente europeus.”[10] O europeísta lida com códigos de uma cultura que, em alguma medida, sempre permanecerá terra estrangeira. É por ser radicalmente forâneo que o europeísta mantém a necessária dose de irreverência para zombar da arrogância dos valores hegemônicos. Para ser europeísta, é preciso aprender pelo menos uma segunda língua e depois uma nova cultura e literatura.

Eis uma tradução bem-humorada do princípio: a distância entre europeu e europeísta jaz no tamanho de suas bibliotecas! O europeísta tem que dominar pelo menos duas tradições — a européia e a sua. A questão nada tem a ver com número de livros na estante, mas à necessidade de relacioná-los, estabelecendo critérios de leitura, cuja ampliação favorece a intensidade estrutural que caracteriza a potência da circunstância não-hegemônica.

Contudo, não se esqueça: potência poucas vezes atualizada na história cultural latino-americana.

(Em boa medida, porque ainda hoje é quase inexistente o diálogo entre cultura brasileira e mundo hispanoamericano.)

NOTAS
[1] A melhor introdução ao conceito de sistema-mundo é de seu autor: Immanuel Wallerstein, World-Systems Analysis: An Introduction, Durham, North Carolina, Duke University Press, 2004.
[2] Domingo Faustino Sarmiento, “Nuestro folletín”. Obras completas. Santiago de Chile: Imprensa Gutenberg, 1885. Tomo II, p. 3, grifos meus. Devo essa citação a Jens Andermann.
[3] Oswald de Andrade. “Manifesto Antropófago”. A utopia antropofágica. 2a. edição. São Paulo: Editora O Globo, 1995, p. 47.
[4] Gabriel García Márquez. “Posibilidades de la antropofagia”. Obra periodística 1. Textos costeños (1948-1952). México: Editorial Diana, 2010, p. 400.
[5] Machado de Assis. Obra completa. Vol. III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, p. 673.
[6] Para discutir o tema em chave renovada, recomendo o livro de José Luís Jobim, Literatura e Cultura: Do nacional ao transnacional (Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013).
[7] Idem, p. 1.013, grifos meus.
[8] Ricardo Piglia. “La novela polaca”. Formas breves. Barcelona: Editorial Anagrama, 2000, p. 72, grifos meus.
[9] Milton Hatoum. “Encontros na península”. A cidade ilhada. Contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 104.
[10] Ernesto Sábato, La cultura en la encrucijada nacional. Buenos Aires: Crisis, 1972, p. 27.

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

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