Os passos perdidos

Carpentier, filho de pai francês e mãe russa, educado na Europa, freqüentador de círculos intelectuais sofisticados
Alejo Carpentier , autor de “Os passos perdidos”
01/06/2013

Apesar de serem Lezama Lima e Cabrera Infante os nomes hoje mais freqüentemente apontados como referências da prosa cubana, não creio que a ilha tenha produzido um romancista superior a Alejo Carpentier.

Carpentier, filho de pai francês e mãe russa, educado na Europa, freqüentador de círculos intelectuais sofisticados, tinha tudo para ter sido um artista emocionalmente dissociado da paisagem caribenha. Mas não foi isso que aconteceu.

Embora o ponto de vista de seus romances seja essencialmente ocidental, embora seu estilo não tenha nada de nativo, toda a obra de Carpentier, ou pelo menos sua parte mais importante, trai um esforço enorme de retratar alguns dos períodos mais emblemáticos da história da América Latina.

É o caso de O reino deste mundo (que recria a personagem do rei Henri Christophe e a notável revolução haitiana do século 18), O recurso do método (sobre um imaginário ditador de um indefinido país latino-americano exilado em Paris), A harpa e a sombra (genial romance que mescla ficção a trechos de cartas e diários de Cristóvão Colombo) e O século das luzes — que muitos consideram sua obra-prima, ambientada no Caribe, entre a Revolução Francesa e a época de Napoleão Bonaparte.

Ia me esquecendo de dizer que Alejo Carpentier foi também um grande musicólogo, tendo publicado um importante ensaio sobre a música cubana. Foi esse talento adicional que lhe permitiu escrever Os passos perdidos — romance que, na minha opinião, está acima de todos os demais.

Os passos perdidos conta a história de um etnomusicólogo que penetra a selva amazônica em busca de instrumentos indígenas para um museu norte-americano.

À medida que o protagonista sobe o rio, o leitor é arrastado por mundos misteriosos, cada vez mais arcaicos; e vê desfilarem personagens fascinantes — exploradores, aventureiros, missionários, mestiços que oscilam entre a civilização e a barbárie, índios que viveriam ainda na Idade da Pedra.

O romance tem a forma de um diário onde as impressões do etnomusicólogo fazem um contraponto ao seu sistema de referências eruditas. Pra ele, não se trata de uma simples expedição científica: a aventura é na prática uma viagem no tempo e o leva a um verdadeiro choque existencial.

Há dois momentos exemplares: quando ele testemunha, na densidade noturna da selva, o canto ritual de um feiticeiro, diante de um cadáver humano rodeado de cães — e supõe estar assistindo ao Canto fúnebre original, que representa o nascimento da música. É impressionante, aliás, a descrição desse canto, que parece emergir das páginas do livro.

O segundo momento é a própria conclusão do diário e do romance. O protagonista, depois de longo tempo embrenhado na mata, volta ao vilarejo onde conhecera a mestiça Rosario, com quem vivera intensa paixão e a quem tinha por mulher. Mas descobre que ela não esperara por ele e tinha agora um outro homem. Desesperado, ouve a explicação de que Rosario era jovem, formosa e forte. Não podia, portanto, ser como Penélope.

Essa última decepção — metáfora do impacto que o universo americano provoca num espírito tipicamente ocidental — é a chave para compreensão da obra.

A tradução brasileira de Os passos perdidos foi publicada pela Brasiliense. Não é dos exemplares mais fáceis de garimpar. Por esse motivo, se estiver bem conservado, R$ 25 não é um preço injusto.

Alberto Mussa

Nasceu no Rio de Janeiro, em 1961. É autor do romance O senhor do lado esquerdo, vencedor do Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional e eleito pela Academia Brasileira de Letras o melhor livro de ficção publicado em 2011.

Rascunho