Terminada a intensa jornada do seminário Leer Iberoamérica Lee — disponível na internet —, sentei-me na varanda da casa que nos abriga há sete anos em Madri e que tem uma história que diz muito da vida intelectual e artística nos últimos cem anos do mundo ocidental.
A famosa Residencia de Estudiantes de Madrid foi — de sua fundação em 1910 até seu fechamento em 1936 pelo ditador Francisco Franco — um abrigo e fomento para muitos criadores e escritores que não apenas marcaram a Espanha, mas a cultura ocidental: Salvador Dalí, Luis Buñuel, Federico García Lorca, Miguel de Unamuno, Alfonso Reyes, José Ortega y Gasset, entre muitos outros. Passaram por esse mesmo espaço, proferindo cursos e palestras, outros cientistas e artistas fundamentais para o século 20, como Einstein, Marie Curie, Marinetti, Le Corbusier. No bloco original da Residencia, onde hoje estão abrigados centros de pesquisas e biblioteca, lê-se nos vidros externos centenas de nomes de pessoas ilustres daquele primeiro período e do posterior à queda do franquismo, alguns ainda vivos e atuantes no cenário internacional. Seus nomes estampam toda a simbologia de resistência à barbárie e a exaltação de valores sublimes e humanitários das ciências e das artes sintetizados naquele conjunto de prédios de tijolos aparentes e em meio a um bosque-jardim que contagia a todos que lá continuam se abrigando.
Sentindo-me imbuído dessa história e da atmosfera quase mágica que me cercava, pensei nos aprendizados do seminário terminado, no convívio continuado dos amigos e parceiros reencontrados e na vontade de seguir mantendo contato com os novos amigos e novos parceiros que o encontro produziu. Paulatinamente, os sentimentos e os afetos vivenciados vão dando lugar aos balanços sobre o que foi dito, debatido, absorvido como essencial. Não simplesmente como uma avaliação burocrática ou exclusivamente acadêmica, mas com a perspectiva de buscar conexões com o mundo contemporâneo que necessita urgentemente se unir em torno de projetos que deem sentido à civilização do nosso tempo. Ao fim e ao cabo, sabemos que não recriaremos o mundo quase em ruínas sem conhecimento, sem fabulação e sem compartilhamento, como o realizado em todos os seminários Leer Iberoamérica Lee, onde compartilhar é a essência mais sublime do conhecimento conquistado.
Ao refletir sobre a intensa semana, conectei-me com debates que encontrarei em próximos fóruns no Brasil e que revisitarão temas permanentes de nossa difícil história da leitura e da escrita. Entre esses temas um prevalece: a distribuição desigual das políticas públicas e dos programas da sociedade civil incidindo na subalternidade e menor importância que o país dá ao livro, à leitura, à literatura e às bibliotecas. De repente, todo meu pensamento idílico da história da Residencia bate contra o muro da realidade brasileira e latino-americana que não compreende a necessidade urgente da formação de leitores/as.
Ressalto que não se trata de desconhecimento dessa necessidade, mas de decisão política, tanto do poder público como da elite econômica e social que detêm recursos para resolver questões como o analfabetismo ou a preservação da bibliodiversidade.
Além disso, exemplos objetivos de programas de formação literária não faltam, como esse que compartilho a seguir.
Entre as intervenções do Leer Iberoamérica Lee, rememoro as falas do brasileiro Alexandre Amaro, pesquisador de leitura e escrita em ambientes de privação de liberdade, e do argentino Waldemar Cubillas, que vivenciou por dez anos a prisão e, após essa experiência, criou e dirige o Centro Cultural e Biblioteca de La Carcova, um bairro da província de Buenos Aires parcialmente construído sobre um lixão a céu aberto. Ambos nos emocionaram com suas reflexões sobre a ótica da leitura na perspectiva dos encarcerados, de como esses seres humanos privados de liberdade percebem e constroem sua relação com a literatura e o livro.
Waldemar compartilhou uma imagem baseada na ideia de que “os amores dependem da paisagem”. E como essa paisagem que constrói o amor pelos livros pode ser possível em um bairro onde ao lado do lixão existem apenas uma penitenciária e a miséria crônica? Ele nos contou que o livro aparece primeiro como papel, para ser vendido a peso; depois ele surge como escudo protetor ao ser colocado sobre o abdômen e proteger o apenado de um estilete inimigo na prisão; depois vai surgindo como viabilizador de pequenos prazeres, como o finíssimo papel retirado da Bíblia e com o qual se fazem cigarros; e, pouco a pouco, o livro nas estantes da modesta biblioteca prisional ou da comunidade constrói outra paisagem e essa paisagem constrói muitas outras que surgem das leituras dos livros, como se cada história lida ou contada abrisse uma porta para o mundo. É a leitura sendo construída.
A fabulação, essa construção essencial ao lado de outras narrativas, que o mestre Antonio Candido defendeu em seu seminal texto O direito à literatura, mostrou-se por inteiro no duro mundo real de Waldemar Cubillas, resistente de La Carcova. Entendo como evidência, baseada em milhares de experiências e territórios similares em toda a América Latina, que a teia da fabulação não é um mero capricho, mas um direito inato que pulsa no centro do ser humano. É no entrelaçar de narrativas, seja na vastidão da literatura ou nas mil faces do contar, que o mundo se revela em sua intrincada dança, e a experiência humana encontra seu eco e seu sentido. Candido, com a peculiar lucidez, nos ensina que a literatura, em sua essência mais profunda, é o sopro que humaniza, expandindo a consciência e talhando no espírito as asas da empatia e da reflexão.
Alcançar esse patamar civilizatório é uma ambição legítima e um objetivo a ser atingido. Para avançarmos é preciso investir não apenas na compra de livros, mas em pessoas formadoras, mediadoras, que possuam o saber-fazer qualificado, uma perícia prática alicerçada em regras e princípios inteligíveis, cuja habilidade lhe permite transformar o bruto em algo ordenado, com propósito e, muitas vezes, beleza. Nos meus andares e pesquisas, percebo a existência de muitas pessoas no universo do livro, da leitura, da literatura e das bibliotecas que navegam por essas águas, como é o caso de Waldemar. Constroem e ensinam a construir em situações-limite, em ambientes hostis, em territórios onde o esperançar freiriano é algo que o cidadão ou a cidadã que consomem três refeições ao dia não imaginam que possa existir.
Nesse período tão intenso e duro da humanidade, quando ressurgem elites fascistas cujo projeto é a não formação de cidadãos críticos, é hora de se abandonar ideias de Poliana de um mundo inexistente e absorvermos de uma vez por todas o propósito de se construir estrategicamente planos de formação de leitores críticos, respaldados por muita mobilização social e alicerçados na unidade de todos os elos do setor do livro e da leitura. Sem essa consistência, não se reverterá o perverso quadro atual que impede grande parcela da sociedade a exercer seu direito à leitura e à escrita.
É preciso construir e, ao pensar assim, revejo mentalmente a exposição Lo tienes que ver, da Fundação March, em que se explora a autonomia das cores na arte abstrata. A montagem inteligente nos faz recordar que “as cores não existem, mas o mundo é inimaginável sem elas”. Mostra ainda que a física ensina que as cores vêm da luz branca e que, desde 1864, com James Maxwell, sabemos que elas são o resultado de uma experiência perceptiva em que a luz é captada pelas células fotorreceptoras da retina, transformando-se em impulsos elétricos que o cérebro reconhece como cores.
Se até as cores que inspiram tantos escritores não são fruto do acaso descuidado, mas exigem percurso complexo e têm o seu acesso possível pela conjunção de percepções, está mais que na hora de tratarmos com responsabilidade a formação de uma sociedade pautada pelos valores, memória e fabulação que encontramos nos bons livros em todos os seus suportes.