🔓 2022: o esperançar das tristezas

A resiliência pulsa e em 2022 é a hora de dar consequência a ela expulsando o que nos entristece e recomeçando a reconstruir o que nos foi tirado
Ilustração: Tereza Yamashita
01/01/2022

Que tal começar este ano com recordações, uma das maiores qualidades intelectuais e sensíveis do ser humano? Não proponho sessões de nostalgia melancólica, embora, às vezes, elas nos apareçam sem pedir permissão. Refiro-me ao profundo sentido de recordare, palavra latina que significa trazer novamente ao coração, exercendo a memória.

A memória e o passar do tempo, quando os percebemos constantemente juntos, podem ser compreendidos de cor, by heart, par coeur, como professa a nossa língua ou outras como a inglesa e francesa, tornando este ato pleno de significados e de consequências para a atuação no presente, ajudando-nos a eliminar os raciocínios incautos, as informações falsas e a dissimulação enganadora que estão em voga na atual necropolítica.

Sempre ligo o ato da recordação ao ato de evocação. Evocar é reproduzir na memória, raciocinando e revivenciando, o profundo sentido de um ato, de uma trajetória de vida, de um período ou momento histórico, seja ele pessoal ou público.

É preciso recordar ativamente, fazer passar novamente pelo coração, metáfora tão sintética do ser humano que une razão e sensibilidade, para podermos permanecer lúcidos contra as armadilhas do tempo, como nos recorda Herbert Marcuse, em pensamento lapidar, livremente retirado do magnífico Eros e Civilização:

O fluxo do tempo é o maior aliado natural da sociedade na manutenção da lei e da ordem […]; o fluxo do tempo ajuda os homens a esquecer o que foi e o que pode ser: os faz esquecer o melhor do passado e o melhor do futuro […]. Esquecer é também perdoar o que não seria perdoado se a justiça e a liberdade prevalecessem […]. As feridas que saram com o tempo são também as que contêm o veneno. Contra essa rendição do tempo, o reinvestimento da recordação […] em seus direitos é uma das mais nobres tarefas do pensamento. O tempo perde seu poder quando a recordação redime o passado.

Já utilizei este pensamento como epígrafe de meu livro Solidão revolucionária — Mário Pedrosa e as origens do trotskismo no Brasil, editado pela Paz e Terra em 1993 e que será relançado em segunda edição neste 2022 pela WMF Martins Fontes. Nele, abri com esse pensamento uma pesquisa/recordação para redimir o tempo em que se ocultou, ou que não se avaliou segundo os fatos históricos, a imensa contribuição teórica e militante de homens e mulheres que ousaram falar contra os cânones da esquerda comunista à época. Foi como navegar contra a corrente de uma história aparentemente sedimentada e única.

Recordar neste início de 2022 é igualmente contrapor-se contra a corrente dos que nos querem impor, como inevitável e predestinado, este mundo de horrores que o neoliberalismo tenta instalar, onde o respeito aos direitos humanos é considerado por fundamentalistas de todas as ordens como algo repugnante, perverso e pasmacento, onde não podemos e não devemos nos mover porque a ordem já está estabelecida. “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, assim pontifica diariamente o candidato à tirano em seu sadismo mal resolvido no exercício da presidência.

Neste espaço generoso do Rascunho, em artigo recente, me recordei de uma reunião nos primórdios do Plano Nacional do Livro e Leitura — PNLL quando o escritor/artista Bartolomeu Campos de Queirós nos recordou que estávamos abandonando as “coisas simples”, esquecendo-as, inclusive da sua eficácia em formar leitores. Nós estamos nos esquecendo da “grandeza das coisas simples”, dos gestos simples que criam grandes resultados no crescimento afetivo e intelectual das crianças e jovens, dizia ele. Aquilo me calou profundamente, porque vinha de um pensador que não raciocinava de maneira simplória, ao contrário, mas que entendia que a complexidade dos grandes problemas que estávamos tratando obscurecia algumas soluções simples e de longo alcance, como a leitura em voz alta, a escolha livre de livros pelas pessoas nas bibliotecas, o ler por ler sem ter à frente um teste de conhecimentos. Ele nos dizia, em síntese, vamos deixar fluir o prazer de ler, de construir fantasias, de viajar nas letras, retomar o simples nas coisas, nunca desconhecendo a complexidade dos problemas e das respostas também necessariamente complexas a eles.

É preciso que esses tempos de massacre contínuo, onde o bombardeamento oficial à criação artística foi adotado como política oficial de destruição da cultura e da educação, não nos impeça de recordar de que outras vias são possíveis. E muito melhores! E, na maioria das vezes, ações simples que podemos construir.

Recordar do alto valor dessas ações e voltar a realizá-las são uma boa maneira de recomeçar, nos tirarão dessa tristeza castradora que soa infinita, pessoal e coletiva, dos últimos infelizes anos em nosso país. A tristeza deve surgir somente em doses necessárias ao equilíbrio da vida, já que somos seres compostos e diversos.

Me lembro de Bartolomeu quando olho o cenário triste que nos impuseram pela captura das coisas simples do cotidiano que nos faziam construir prazeres e alegrias mesmo sob severa restrição econômica e opressão social. E me vem à mente uma canção, de autoria de Armando Tejada Gomez e César Isella, interpretada por Chavela Vargas, Mercedes Sosa e Martírio, esta última com a gravação mais recente e que tive a oportunidade de ouvir em Madri no encerramento do primeiro seminário Leer Iberoamerica Lee (leeriberoamericalee.com).

Uno se despide insensiblemente de pequeñas cosas,
Lo mismo que un árbol en tiempos de otoño queda sin sus hojas.
Al fin la tristeza es la muerte lenta de las simples cosas,
Esas cosas simples que quedan doliendo en el corazón.

Os versos de Canción de las simples cosas nos revelam que a tristeza é a “morte lenta das coisas simples”. Quais as coisas simples que perdemos e que nos deixaram tristes?

Perdemos como coletividade, como nação, valores simples, daqueles que se esperam entre conhecidos e amigos, entre vizinhos de um mesmo território, algo como a confiança de que podemos falar livremente sem riscos de sermos agredidos. Perdemos a compaixão com os menos favorecidos pela sociedade desigual, a empatia com atingidos pelas enfermidades e pelo desemprego, a solidariedade pelos injustiçados, o respeito aos direitos humanos.

Dados da World Happiness Report, pesquisa mundial que envolveu 1,7 milhão de pessoas e 153 países, com dados objetivos da Harvard University e Nature, demonstraram em 2020 que o Brasil decresceu do seu nível de felicidade desde 2013, atingindo seu índice mais baixo em 2020 com pontuação 6.11.

Se me expresso na generalização da tristeza que imobiliza a maioria, é preciso também mostrar o “lado cheio do copo”. Muitos não se deixaram abater pela tristeza, mesmo que a sensação geral seja de desânimo. Essas manifestações se impõem cada vez mais nas múltiplas resistências artísticas, culturais e educacionais que são alimentadas por milhares de profissionais e militantes das artes, da cultura e da educação. Distribuem, à revelia de políticas públicas destruidoras ou ausentes, o necessário alimento às nossas simples coisas que tentam nos tirar.

Resistimos nos territórios dos municípios, das cidades e, principalmente, nas comunidades periféricas onde a vida pulsa e o Estado elitista atua somente sob pressão. Conquistas locais obtém chancela ou parceria com o poder público das municipalidades. Pesquisa da Rede LEQT demonstrou que 153 cidades e 12 estados têm ou estão prestes a obter seus Planos Municipais de Livro e Leitura. Em São Paulo, há um mês, realizou-se a terceira eleição para o Conselho do Plano Municipal do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas. As bibliotecas comunitárias e a atuação dos professores conscientes chegam a milhões de cidadãos de todas as idades. O Brasil real age, rebelde e firme, às investidas que buscam castrá-lo.

A resiliência pulsa, recordemos, e 2022 é a hora de dar consequência a ela expulsando o que nos entristece e recomeçando a reconstruir o que nos foi tirado da política pública.

José Castilho

É doutor em Filosofia/USP, docente na FCL-Unesp, editor, gestor público e escritor. Consultor internacional na JCastilho – Gestão&Projetos. Dirigiu a Editora Unesp, a Biblioteca Pública Mário de Andrade (São Paulo) e foi secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (MinC e MEC).

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