Revistas literárias da década de 1970 (7)

O desinteresse do mercado publicitário e erro na estratégia de distribuição contribuíram para a morte da "Ficção"
01/09/2009

Entre janeiro de 1976 e setembro de 1979, Ficção tornou-se um dos veículos mais importantes para a divulgação do novo conto brasileiro: foram mais de 400 autores em 45 números. E, embora a revista não tenha tido problemas com a censura[1], não se furtou em tratar dos assuntos mais candentes do momento, sempre se posicionando a favor da liberdade de opinião e contra a ditadura militar, e pela profissionalização do escritor.

Já em seu nº 14, de fevereiro de 1977, anotava o editorial: “Mais de mil escritores, jornalistas, professores, cineastas, músicos e artistas brasileiros, tendo em vista a ação da censura, especialmente diante da apreensão dos livros Aracelli, meu amor, de José Louzeiro, Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, e Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, enviaram ao Ministério da Justiça manifesto pedindo o fim das restrições à liberdade de expressão (…) documento que Ficção subscreve integralmente (…)”. O texto do manifesto, além de bater-se pela liberdade de expressão — “não podemos ser continuadamente silenciados” —, afirmava corajosamente que “os destinos de um País não são apenas determinados pelos seus governantes. É preciso consultar constantemente o povo, permitir que, em seu nome, seus artistas possam se expressar”.

O nº 25/26, de janeiro/fevereiro de 1978, volta à carga: “Já 1978 começou sob o signo de aberturas políticas, mas em menos de um mês foram recolhidos aos porões do Ministério da Justiça seis livros ‘por atentado à moral e aos bons costumes’. Como é de costume nesses casos, os livros serão devidamente incinerados. Enquanto isso, a censura continua ceifando com entusiasmo; a última proeza dessa iracunda senhora foi cortar impiedosamente entrevista do escritor Caio Fernando Abreu no Suplemento Literário da Tribuna da Imprensa”. E até em sua antepenúltima edição, a de nº 38/39, de fevereiro/março de 1979, a revista conclamava: “Para nós, como para todos os brasileiros, o ano de 1979 se apresenta como um ano de luta pela ampliação e consolidação das liberdades e conquista de uma sociedade democrática. Os escritores, num país como o nosso, queiram ou não, são a voz dos que não podem falar e o acicate crítico para os que não querem ver. Não podem, contudo, seguir agindo como combatentes solitários; assim, o papel do Sindicato dos Escritores avulta, tanto na defesa dos direitos específicos da profissão como para a arregimentação da categoria na luta mais geral do povo brasileiro por uma vida melhor”[2].

Liberdade de expressão
A idéia do fortalecimento da categoria, por meio de um órgão classista, estava presente no horizonte da oposição brasileira naquele momento. Basta recordar que, após 15 anos de repressão, os trabalhadores do ABC, percebendo a necessidade de extrapolar as reivindicações socioeconômicas, assumem a vanguarda política e saem para as ruas reivindicando liberdade de expressão e de organização. Por seu turno, os editores da Ficção — Salim Miguel (1924), Eglê Malheiros (1928), Cícero Sandroni (1935), Laura Sandroni (1934) e Fausto Cunha (1923-2004) — concitavam seus pares, em editorial do nº 31, de julho de 1978: “O clima de livre discussão e troca de idéias ainda está longe do que deve ser e ainda não se reveste das garantias que lhe devem ser inerentes. Para lutar pela liberdade de expressão, em defesa de seus direitos e por uma crescente tomada de consciência de sua responsabilidade social, urge que os escritores brasileiros façam de seu sindicato um órgão verdadeiramente atuante. Trabalhadores intelectuais há muito (mesmo os que anacronicamente o desejam) não podem viver em torres de marfim, agora é tempo de deixar de lado as queixas, em geral justas, e arregaçar as mangas para começar a mudar as coisas”.

Um posicionamento em tudo coerente para aqueles que, desde o princípio, lideraram a discussão sobre a profissionalização do escritor e seu papel na sociedade[3]. Assim, no nº 4, de abril de 1976, o editorial da Ficção reconhecia: “Esta revista surgiu no mercado editorial brasileiro com uma proposta bem definida: tornar-se o veículo do autor brasileiro de hoje e divulgar os bons autores do passado. Ao lançar o seu número quatro, Ficção pode atestar a excepcional receptividade por parte do público em relação ao seu projeto. Está demonstrada assim a existência de um expressivo mercado para o autor brasileiro”. No número seguinte, constatava: “Quando FICÇÃO anunciou seu propósito de lançar autores nacionais, oferecendo remuneração a nosso ver ainda insuficiente, mas que significava pelo menos três vezes mais do que habitualmente se pagava, muita gente não acreditou que a experiência pudesse dar certo. Hoje, quase meio ano depois, as revistas estabelecidas na praça descobriram que o leitor brasileiro prefere as narrativas que falem da realidade, e partiram em busca do autor nacional (…). Formou-se assim um incipiente mercado de trabalho para o contista; mercado reduzido ainda, mas que, pelo menos no que depender de FICÇÃO, estará em expansão permanente, não só através de novas revistas como também na melhoria do pagamento”[4].

Pouca publicidade
Em outro número, o 24, de dezembro de 1977, os editores aproveitavam para enviar um recado: “Não fizemos as clássicas concessões, não permitimos (nem vamos permitir) que o nosso nome e a nossa linha fossem objeto de negociação — e seria tão fácil. Em vez de estender a mão aos favores oficiais, preferimos estendê-la ao celeiro inesgotável do talento dos nossos escritores e confiar no apoio dos leitores (…)”. Apoio que, no entanto, sempre faltou por parte dos anunciantes, como será continuamente lamentado: “Como sobrevive uma revista de contos, cujo elenco de autores apresenta em sua maioria nomes novos sem aquela aura de fama e celebridade que consagra o escritor de best-seller? Primeiro, através do apoio dos leitores. Segundo, com as verbas de publicidade. O primeiro jamais nos faltou. Quanto ao segundo, ainda não conseguimos ultrapassar a barreira de incompreensão das grandes agências”, afirmava o editorial do nº 7, de julho de 1976.

A situação não era diferente mais de um ano depois. No nº 24, de dezembro de 1977, o editorial registrava: “Para os que estão de fora, manter uma revista literária requer somente dedicação e lirismo. A todos parece que a parte material é garantida pelo próprio aspecto cultural da publicação, há milhares de entidades interessadas em auxiliar-nos. Antes fosse verdade. Cada número é uma nova luta. Se as colaborações têm sido fartas, se o número de jovens escritores parece aumentar dia a dia (…), é preciso que ninguém tenha ilusões a respeito das crescentes dificuldades que se erguem diante de qualquer iniciativa cultural que não tenha um fim imediato em si”. E esta foi a realidade enfrentada pela revista até seu fim, em setembro de 1979.

Salim Miguel reputa a um erro de avaliação a morte da Ficção: “A revista começou com quinze mil exemplares, mas, a partir da metade do penúltimo ano [1978], devido à troca de distribuidora, tivemos que diminuir a tiragem. Motivo: a primeira distribuidora, Imprensa, não sei se direta ou indiretamente ligada ao Jornal do Brasil, tinha menos pontos de venda do que a segunda, mas eram lugares em que a revista despertava real interesse. Além disso, ela nos devolvia o encalhe. A segunda, a Fernando Chinaglia, a maior do País naquela época, e que de início não nos aceitara, tinha quase o dobro de pontos de venda, contudo para muitos deles uma revista literária não despertava interesse. Além disso, ela nos devolvia apenas as capas das revistas não vendidas. A posse do encalhe nos ajudava a divulgar mais a revista, fornecendo coleções para universidades, para o Itamaraty, que as mandava para o exterior, e a entregar para estudantes que saíam fazendo uns trocados e promovendo a revista”[5]. Como afirma Miguel Sanches Neto, Ficção morreu deste mal tão comum entre as revistas culturais do país, “a falta de meios materiais para sobreviver com independência”, mas já havia cumprido seu papel, “o de revelar a existência de mercado para o autor nacional”[6].

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Notas
[1] “Fomos obrigados a fazer um registro no Departamento de Polícia Federal, mas, ao contrário de outras publicações, não tínhamos que mandar com antecedência o número preparado.” Salim Miguel em entrevista ao autor.

[2] É importante lembrar que o início de 1979 marca o começo de uma certa flexibilização do governo Figueiredo (1979-1985), mas também o recrudescimento da reação da direita, que promove ataques terroristas contra órgãos de imprensa e entidades engajadas na luta pela volta da democracia.

[3] Posicionamento explicitado no editorial do nº 13, de janeiro de 1977: “(..) o apoio e incentivo que vimos recebendo de leitores e colaboradores só fazem reforçar a certeza de que a luta pela ampliação do lugar do escritor brasileiro em nossa cena cultural é justa, necessária e historicamente fadada ao sucesso. E de que também, mesmo no atual contexto, há um público potencial a ser ganho para a literatura; uma literatura ligada a nossos temas, a nossos sonhos e pesadelos, visão crítica da nossa realidade e afirmação de nossa identidade cultural”.

[4] “Várias vezes nos perguntaram quem estava por trás da revista, pelo fato de remunerarmos os colaboradores. A revista se sustentava graças aos assinantes, à venda avulsa e aos anúncios de algumas empresas e instituições”. Salim Miguel em entrevista ao autor.

[5] Em depoimento ao autor.

[6] In: Ficção – histórias para o prazer da leitura. Uma antologia. Belo Horizonte: Leitura, 2007, s/pag.

Luiz Ruffato

Publicou diversos livros, entre eles Inferno provisório, De mim já nem se lembra, Flores artificiais, Estive em Lisboa e lembrei de você, Eles eram muitos cavalos, A cidade dorme e O verão tardio, todos lançados pela Companhia das Letras. Suas obras ganharam os prêmios APCA, Jabuti, Machado de Assis e Casa de las Américas, e foram publicadas em quinze países. Em 2016, foi agraciado com o prêmio Hermann Hesse, na Alemanha. O antigo futuro é o seu mais recente romance. Atualmente, vive em Cataguases (MG).

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