Revistas literárias da década de 1970 (6)

A diversidade de vozes foi uma das marcas mais contundentes da revista Ficção
01/08/2009

A revista Ficção, publicada entre janeiro de 1976 e setembro de 1979, foi, sem dúvida alguma, o principal veículo de divulgação da chamada “Geração 70” de contistas e romancistas brasileiros. Mas seu corpo editorial — composto por Salim Miguel (1924), Eglê Malheiros (1928), Cícero Sandroni (1935), Laura Sandroni (1934) e Fausto Cunha (1923-2004) — soube, com rara acuidade, mesclar antigos e novíssimos, clássicos e estreantes, estrangeiros e nacionais, numa linha eclética que assimilava as diferenças, como, por exemplo, difundindo textos de ficção científica, policiais e de humor, gêneros em geral desprezados como “literatura menor”. “A revista realizou um mapeamento do conto em todo o Brasil, e não apenas do conto contemporâneo. Publicou regionalistas como Hugo de Carvalho Ramos, clássicos como Machado de Assis e Lima Barreto, modernistas como Mário de Andrade, entre tantos. Ao mesmo tempo em que ajudava a consolidar nomes como um Dalton Trevisan ou um Rubem Fonseca, publicava novos. Alguns já tinham livros ou contos publicados em revistas e outros fizeram sua estréia na Ficção. Outra proposta era a publicação de textos de autores dos mais diferentes países, fossem nomes do passado como Flaubert, nomes já conhecidos ou iniciantes”, conta o casal Salim Miguel e Eglê Malheiros[1].

Alguns dos autores que passaram pelas páginas da revista, então inéditos ou ainda pouco divulgados, consolidaram uma importante carreira posteriormente. Entre outros, estão nomes como Otto Lara Resende (1922-1992), Rubem Fonseca (1925), Samuel Rawet (1929-1984), Wander Piroli (1931-2006), Roberto Drummond (1933-2002), Ignácio de Loyola Brandão (1936), Moacyr Scliar (1937), Nélida Piñon (1937), Antonio Torres (1940), Sergio Faraco (1940), Sergio Sant’Anna (1941), João Ubaldo Ribeiro (1941), Luiz Vilela (1942), João Gilberto Noll (1946), Caio Fernando Abreu (1948-1996), Domingos Pellegrini (1949), além de Valêncio Xavier (1933-2008)[2], Francisco J.C. Dantas (1941)[3] e Antonio Carlos Viana (1946)[4], que, por razões as mais diversas, somente iriam ingressar efetivamente no mercado editorial cerca de vinte anos depois.

Novelas e romances
Havia espaço também para a publicação de novelas e capítulos de romances inéditos. No primeiro caso, a revista editou textos longos de Autran Dourado (1926)[5], Maria de Lourdes Teixeira (1907-1987)[6], Renard Perez (1928)[7], Antonio Torres[8] e Fausto Cunha[9], além de dedicar todo o nº 22, de outubro de 1977, ao gênero[10]. No segundo caso, foram editados trechos dos romances Os habitantes, de Dalcídio Jurandir (1909-1979), Os dois irmãos, de Oswaldo França Jr. (1936-1989)[11] e Um dia vamos rir disso tudo, de Maria Alice Barroso (1926), lançados em 1976; Antes do horizonte, de Ibiapaba Martins (1917-1985) e O desafio aos limites, de Martha Antiero (1927-1985), lançados em 1977; A casa da madrinha, de Lygia Bojunga Nunes (1932), Doutora Isa, de Juarez Barroso (1934-1976)[12] e Deus, o sol e Shakespeare, de Assis Brasil (1932), lançados em 1978, e Morto moreno, de Carlos Jurandir (1941), lançado em 1979. Também saíram excertos de anunciados romances de Carlos Heitor Cony (1926)[13], Adonias Filho (1915-1990), Haroldo Bruno (1922-1982), Gilberto Mansur (1942) e Fausto Cunha[14], aparentemente não aproveitados.

Autores já então consagrados passaram pelas páginas da revista com contos inéditos, como José Américo de Almeida[15] (1887-1980), Orígenes Lessa (1903-1986), Mario Quintana (1906-1994), Bernardo Élis (1915-1997), José J. Veiga (1915-1999), Joel Silveira (1918-2007), Lygia Fagundes Telles (1923), Marcos Rey (1925-1999) e Dalton Trevisan (1925). E escritores antigos foram novamente postos em circulação, numa seção intitulada “Antologia”, presente em todos os números da revista, à exceção dos dois últimos. Assim, em meio a escolhas óbvias como Lima Barreto, Machado de Assis e Mário de Andrade, por exemplo, foram recuperados autores que há muito se encontravam absolutamente esquecidos — Julia Lopes de Almeida (1862-1934), Virgílio Várzea (1863-1941), Valdomiro Silveira (1873-1941), João do Rio (1881-1921), Godofredo Rangel (1884-1951), Adelino Magalhães (1887-1969), Gastão Cruls (1888-1959), Afonso Schmidt (1890-1964), João Alphonsus (1901-1944), Breno Accioly (1921-1966) e Geraldo Santos (1924-1967).

Ficção científica, policial e humor
Como dito, “gêneros menores” foram valorizados. A revista mantinha uma seção destinada à “ficção científica”, que, embora em sua maior parte ocupada por autores estrangeiros, abrigou e incentivou a produção nacional[16]. Também uma seção exclusiva para o “conto policial”, este freqüentado com mais assiduidade pelos brasileiros[17], inclusive com a edição de um número, o 23, de novembro de 1977, todo voltado para o tema[18]. E ainda uma seção para o “conto de humor”, que publicou textos de Barão de Itararé (1895-1971), Millôr Fernandes (1924), Chico Anísio (1931), Carlos Eduardo Novaes (1940) e Marcos de Vasconcelos (1933). Além de um número especialmente dedicado ao assunto[19] e outro aos quadrinhos[20], todos os números da revista abriam espaço para contribuições de chargistas e caricaturistas. Finalmente, em dezembro de 1977, foi tirado um volume extra, “dedicado aos jovens”, “histórias de sonhos e de realidade, histórias alegres e tristes, histórias para ler e reler. Histórias que vão também agradar à gente-grande”, com textos de alguns autores que iriam se tornar emblemáticos do segmento infanto-juvenil, como Ruth Rocha (1931), Ganymedes José (1936-1990), Giselda Laporta Nicolelis (1938) e Ana Maria Machado (1942)[21], entre outros.

Seguindo a tradição da época, de pensar a América Latina como um organismo vivo e interdependente, a Ficção, assim como a Escrita, concedeu generoso espaço para a divulgação da literatura hispânica, publicando autores jovens ou ainda desconhecidos por aqui, como os argentinos Fernando Sorrentino, Pablo Leonardo, Roberto Romero Escalada e Hector Victor Marrocchi; os mexicanos Carlos Fuentes, Juan Rulfo, Edmundo Valadés, Juan José Arreola, José Revueltas e Hector Morales Saviñón; os uruguaios Eduardo Galeano, Enrique Estrázulas e Horácio Quiroga; os peruanos José Maria Arguedas, César Vallejo e Carlota Carvalho de Núñez; o venezuelano Ednodio Quintero; o dominicano Juan Bosch e o colombiano Umberto Valverde. Destes, a maioria nunca chegou a ter livros editados por aqui[22].

Mas, os editores, mais uma vez seguindo a sua linha de ecletismo e abertura, não se limitaram a divulgar os latino-americanos. Aos leitores, ofereceram clássicos, antigos e modernos, como os franceses Voltaire, Villiers de L’Isle-Adam, Flaubert e Maupassant; os espanhóis Cervantes e Unamuno; os russos Tchekov e Górki; os britânicos Wells, Wilde, Katherine Mansfield, Maugham e Durrel; os italianos Boccaccio e Pirandello; os alemães Hoffmann, Kafka[23], Brecht e Mann; os norte-americanos Poe, Crane, Bret Hart, O. Henry, Scott Fitzgerald e Hemingway; o sueco Strindberg, o dinamarquês Jens Peter Jacobsen e o japonês Matsume Sosséki. Não desprezou, entretanto, os estrangeiros contemporâneos, como os húngaros Moritcs Zsigmond e Ivan Boldiszar, o espanhol Julián Gustems, os alemães Klaus Peter Wolf e Theodor Weissenborn, e o sul-africano Lewis Nkosi, curiosamente, todos ainda hoje inéditos em livro no Brasil. Por fim, também deram espaço aos autores lusófonos, como os clássicos portugueses Camilo Castelo Branco, Eça de Queiroz e Raul Brandão; os modernos Miguel Torga, Maria Judite de Carvalho e Sidónio Muralha, além do angolano Luandino Vieira e do moçambicano Luís Bernardo Honwana.

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Notas
[1] Em depoimento ao autor.

[2] Publicou O mez da grippe (São Paulo: Companhia das Letras, 1998), Meu 7º dia (São Paulo: Ciência do Acidente, 1998), Minha mãe morrendo e Menino mentido (São Paulo: Companhia das Letras, 2001), Crimes à moda antiga (São Paulo: Companhia das Letras, 2004) e Remembranças da menina de rua morta nua (São Paulo: Companhia das Letras, 2006).

[3] Francisco José Costa Dantas, como assinava na revista, só iria estrear em 1993, com o romance Os desvalidos (São Paulo: Estação Liberdade), seguido de Coivara da memória (São Paulo: Estação Liberdade, 1996), Cartilhas do silêncio (São Paulo: Companhia das Letras, 1997), Sob o peso da sombra (São Paulo: Planeta do Brasil, 2004) e Cabo Josino Viloso (São Paulo: Planeta do Brasil, 2005).

[4] Embora tenha publicado, em 1974, Brincar de manja, em 1981, Em pleno castigo, e em 1993, O meio do mundo, apenas em 1999, com o lançamento de O meio do mundo e outros contos (São Paulo: Companhia das Letras), seleção dos livros anteriores, é que passa a ser conhecido. Em seguida, publicou Aberto está o inferno (São Paulo: Companhia das Letras, 2004) e Cine privê (São Paulo: Companhia das Letras, 2009).

[5] Publicado no nº 1, de janeiro de 1976, “Manuela em dia de chuva” faz parte do livro Armas e corações (Rio de Janeiro: Difel, 1978).

[6] “Luar no beco”, editado no nº 8, de agosto de 1976, foi incluído na antologia O conto da mulher brasileira (São Paulo: Vertente, 1978, p. 149-174), e não me consta que tenha sido incorporado posteriormente a algum outro título da autora.

[7] “Visita”, publicado no nº 25/26, de janeiro/fevereiro de 1978, pertence ao volume Irmãos da noite (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979).

[8] A novela O dia de São Nunca, publicada no nº 10, de outubro de 1976, juntamente com os contos também saídos na revista, compõe o livro Meninos, eu conto (Rio de Janeiro: Record, 1999).

[9] “Mar de pedras”, editado no nº 12, de dezembro de 1976, foi aproveitado em O dia da nuvem (São Paulo: Cultura, 1980).

[10] O volume continha seis novelas: duas brasileiras, de Coelho Neto e Moacir C. Lopes, e quatro estrangeiras, do norte-americano John Berryman, do italiano Dino Buzzati, do francês Voltaire e do austríaco Robert Musil.

[11] O título do romance, em junho de 1976, quando teve um trecho publicado no nº 6 da revista, ainda era A flor da 5ª feira.

[12] Lançamento póstumo.

[13] No nº 7, de julho de 1976, o autor publicou um texto intitulado “Um avô desce aos infernos”, que seria parte do “romance, em preparo” Francisco de Moraes Laudano. Na sua apresentação, constava ainda um outro livro em preparo, Opinião da vaca, minha mãe, sobre a cidade do Rio de Janeiro. No entanto, somente em 1995, Cony voltaria à ficção, com o lançamento de Quase memória (São Paulo: Companhia das Letras).

[14] “Na Etrúria um boi falou ou Prisão e morte de Vitélio, segundo Tácito”, publicado no nº 38/39, de fevereiro/março de 1979, seria um trecho do romance Mata-me de novo, astronauta, um livro, segundo os próprios editores, “já um pouco lendário” e que, “talvez saia finalmente este ano” – o que não consta ter ocorrido.

[15] Na verdade, um pequeno trecho de seu livro de memórias Antes que me esqueça (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976).

[16] Além do decano, Fausto Cunha, foram aproveitados contos de Lucia Benedetti (1914), Gilvan Lemos (1928), Danny José Alves (1930) e José Fabiano da Rocha (1952).

[17] Passaram pelas páginas da revista R. Magalhães Jr (1907-1981), Luis Martins (1907-1981), Luis Lopes Coelho (1911-1975), Osmard Andrade (1923), Jorge Rizzini (1924-2008), Edison Nequete (1926), Deodato Tufolo (1928), Adolfo Boos Jr (1931) e Victor Giudice (1934-1997).

[18] Composto de 16 contos inéditos de autores nacionais e dois selecionados para a antologia, um brasileiro, Medeiros e Albuquerque (1867-1934), e o norte-americano O. Henry.

[19] O nº 16, de abril de 1977, com 13 contos inéditos, 3 contos selecionados (de José Càndido de Carvalho, Fernando Sabino e Stanislaw Ponte Preta) e dois “antológicos”, o brasileiro França Junior (1838-1890) e o italiano Pittigrilli.

[20] Editado por Fernando e Walter Hermano Lenine, equivalente ao nº 37, de janeiro de 1979, contou com 14 autores: Fernando, Otto, Canini, Moilica, Nani, Arnaldo, Reinaldo, Coentro, Leib, Walter, Luscar, Rico, Mariza e Leite.

[21] A autora receberia, em 2000, o Prêmio Hans Christian Andersen, considerado o Prêmio Nobel para a literatura infanto-juvenil. Antes dela, em 1982, Lygia Bojunga Nunes também havia recebido a condecoração.

[22] Carlos Fuentes, Juan Rulfo, José Maria Arguedas, Eduardo Galeano e Horácio Quiroga tiveram mais de uma obra publicada no Brasil, enquanto Fernando Sorrentino, Pablo Leonardo e Juan José Arreola contam apenas com um livro editado cada um. César Vallejo é conhecido por aqui apenas por sua obra poética.Sua prosa permanece inédita.

[23] Embora nascido em Praga, na República Tcheca, o judeu Franz Kafka escrevia em alemão.

Luiz Ruffato

Publicou diversos livros, entre eles Inferno provisório, De mim já nem se lembra, Flores artificiais, Estive em Lisboa e lembrei de você, Eles eram muitos cavalos, A cidade dorme e O verão tardio, todos lançados pela Companhia das Letras. Suas obras ganharam os prêmios APCA, Jabuti, Machado de Assis e Casa de las Américas, e foram publicadas em quinze países. Em 2016, foi agraciado com o prêmio Hermann Hesse, na Alemanha. O antigo futuro é o seu mais recente romance. Atualmente, vive em Cataguases (MG).

Rascunho