A ingratidão cultivada

Três divulgadores da literatura brasileira no mundo são solenemente esquecidos
01/02/2009

Entre as inúmeras qualidades que nós, os brasileiros, nos atribuímos, não parece estar, definitivamente, a gratidão. Sim, esta afirmação, alguns podem contestar, é apenas a construção de mais um estereótipo. Os estereótipos, positivos ou negativos, são generalizações de particularidades que podem ser confirmados pelo olhar do observador ou pelo interesse do observado… Mas, insisto, somos um povo que cultiva a gratidão? Penso que não, pelo menos no âmbito literário. Abaixo, três exemplos recentes.

A partir de meados da década de 1970 e por toda a década seguinte, bateu pernas por aqui um jovem professor norte-americano, alto e magro, irônico sempre, sarcástico às vezes, apaixonado pela literatura brasileira. Chamava-se Malcolm Silverman e dava aulas de português e espanhol na Universidade Estadual de San Diego, na Califórnia. Dava aulas? Não, na verdade, arregimentava novos entusiastas para a nossa cultura. Nome sempre presente nas revistas e suplementos literários brasileiros da época, tornou-se amigo de escritores, editores e ensaístas — leitor voraz, edificou, destemidamente, um dos melhores panoramas críticos da literatura daquele período.

Preocupado não só em propagar nossas letras, mas também em inculcar o gosto pelo aprendizado da língua portuguesa em seus alunos norte-americanos, seus livros sempre ostentaram esse duplo caráter, divulgativo e didático. Em 1978, lançou Moderna ficção brasileira, que ganhou um segundo volume em 1981 (há uma reedição dos dois volumes em 1982); em 1985, organizou a antologia crítica (com exercícios gramaticais) O novo conto brasileiro, que rapidamente alcançou várias reedições (além de uma versão em espanhol, em 2002); em 1987, saiu a coletânea de ensaios A moderna sátira brasileira. Em inglês, Imagens jornalísticas brasileiras An intermediate to advanced portuguese reader contava dez edições até 2000. E o imprescindível Protesto e o novo romance brasileiro, de 1995 (com nova edição em 2000), é ainda hoje o mais abrangente estudo da ficção brasileira sob a ditadura militar. Para além disso, generoso, usava o espaço cativo na prestigiosa revista World Literature Today para falar dos autores que iam surgindo.

No entanto, na década de 1990 Silverman começou a sair de circulação. O Mal de Parkinson o consumia. Suas viagens ao Brasil diminuíram de freqüência e aos poucos seu nome deixou de ser lembrado. Em 1999, quando atrevidamente o procurei para solicitar que escrevesse um prefácio para meu segundo livro, (os sobreviventes), publicado no ano seguinte, já quase ninguém proclamava aquele que pouco antes havia se encarregado de difundir no Brasil e nos Estados Unidos dezenas de escritores muitas vezes desconhecidos até mesmo por seus pares. Em 2002, Silverman esteve em São Paulo (creio que pela última vez) e nos reunimos, eu, ele e o contista Ariosto Augusto de Oliveira. Embora bastante depauperado pela doença, mostrava entusiasmo com as pesquisas sobre os novos autores que iriam compor o segundo volume do O novo conto brasileiro, livro que não chegou a editar.

Naquele mesmo ano, recebi um cartão de natal, procedente da Costa Rica, último contato efetivo que mantivemos. Por mais que me esforçasse, não consegui mais saber notícias suas. Amigos meus procuraram-no nos Estados Unidos, mas a única notícia concreta foi a de sua aposentadoria, por problemas decorrentes do agravamento da doença. Os anos se passaram e em junho do ano passado a romancista e contista Miriam Mambrini me escreveu comunicando a morte de Silverman. Tinha 62 anos e, como prêmio pela sua dedicação exaustiva à literatura brasileira, ganhara o silêncio, o mais absoluto silêncio…

Amizade
Não tão absoluto, mas igualmente constrangedor, o silêncio sobre a morte de Ray-Güde Mertin, tradutora de português e espanhol, professora de Literatura Brasileira na Universidade de Frankfurt e uma das mais prestigiadas agentes literárias européias (entre as dezenas de autores por ela representados, os prêmios Nobel José Saramago e Gabriel García Márquez). Embora circulasse com igual desenvoltura por todos os países da América Hispânica, era aqui, no Brasil, que se sentia em casa, esse o país que amava. Nos últimos tempos, havia comprado um pequeno sítio no Ceará, para onde sonhava mudar-se — desejo que um câncer terrível, com o qual convivia há anos, impediu de ver realizado. Eu a conheci durante a Bienal do Livro de 2005, no Rio de Janeiro, quando do lançamento da antologia que organizei, 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira. Seus vivazes olhinhos azuis me conquistaram imediatamente e nos tornamos amigos — uma amizade curta, porém intensa (e que conste: ela nunca foi minha agente).

Encontramo-nos poucas vezes, mas foram sempre momentos inesquecíveis, como um longuíssimo almoço em minha casa em São Paulo, ou uma mágica viagem entre Berlim e Hamburgo, em busca de uma pequena cidade chamada Nordstedt, no Schleswig-Holstein, estado natal da minha companheira de trem. Como nos divertimos naquele setembro de 2006, passeando por Hamburgo, com um engenheiro que reconstruíra várias pontes da cidade, bombardeadas na Segunda Guerra, ou comendo carne de veado num restaurante típico da cidadezinha industrial! Em 13 de janeiro do ano seguinte, recém-instalado no Habana Riviera Hotel, em Havana, vindo de uma cansativa viagem de São Paulo, via Cidade do Panamá, para participar do júri do Prêmio Casa de las Américas, o telefone tocou e recebi a trágica notícia de seu falecimento, aos 62 anos. Tristeza ainda maior senti na volta ao Brasil, ao perceber quão pouca repercussão causou sua morte nos meios literários…

Lealdade às letras brasileiras
Pior mesmo só o desprezo com que tratamos a perda este ano de Jacques Thiériot, um dos maiores tradutores do português para o francês de todos os tempos — mas, mais que isso, um amigo sincero e leal das letras brasileiras na França. Entre 1958 e 1978, Thiériot viveu em diversos países da América Latina, sendo 10 anos somente no Brasil, como diretor da Aliança Francesa. Ao voltar para a França, ajudou a fundar em Arles, em 1987, o College International des Traducteurs Littéraires, centro que dirigiu entre 1988 e 1998, e que recebe e hospeda escritores e tradutores das várias partes do mundo. Sozinho, e algumas vezes em co-autoria com sua mulher, Teresa, traduziu alguns dos maiores nomes da prosa de ficção brasileira, como Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Antônio Callado, João Ubaldo Ribeiro, entre outros. Apaixonado por teatro, verteu peças de Nelson Rodrigues e Plínio Marcos.

Tive o privilégio de conhecer Jacques Thiériot e por ele ser traduzido. Em 2004, todas as sextas-feiras ao meio-dia, religiosamente, eu recebia um telefonema dele, da França, para discutirmos passagens do meu romance Eles eram muitos cavalos, publicado no ano seguinte pela Éditions Métailié. Em fins daquele ano, disposto a aproveitar melhor os ares do Rio de Janeiro, mudou-se em definitivo para o Brasil — e o meu segundo livro traduzido por ele, Mamma, son tanto felice (que ganhou o título de Des gens heureux), já teve como cenário de nossas conversas a paisagem carioca. Infelizmente, pouco pôde aproveitar desta nova fase — em 2006, um tombo em seu apartamento em Copacabana comprometeu seriamente sua saúde e, apesar do incansável empenho e zelo de Teresa, morreu em outubro do ano passado.

Não fosse por tudo que Thiériot fez para divulgar a literatura brasileira na França — muito mais, com certeza, que todo o empenho institucional do governo brasileiro — ainda assim teríamos muitos motivos para louvá-lo. Poucos sabem, mas Thiériot teve um papel fundamental para a existência de um dos marcos mais importantes da dramaturgia brasileira de todos os tempos, a adaptação do romance Macunaíma, de Mário de Andrade, para o teatro, em 1978. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo[1], o consagrado diretor Antunes Filho relata como ocorreu a transposição: “‘Você vai fazendo, improvisa dentro daquilo que está escrito’. Aí, alguém escrevia. A gente avançou assim, cena por cena. Quando juntou mais ou menos tudo, dava seis horas de espetáculo. Aí, a gente chamou o homem que estava vertendo para o francês, Jacques Thiériot. ‘Fica ali na mesinha escrevendo’, outro ficava fazendo a cena, e foi assim. Foi assim que foi criado, na base da improvisação o tempo todo. E depois eu precisava armar também as cenas, para dar o fluxo. Eu dava, aí ele pegava e colocava dentro das especificações solicitadas pelo sr. Mário de Andrade’”. Mais que isso, Antunes Filho confessa que o próprio interesse por Macunaíma decorreu da influência de Thiériot. “A idéia do Macunaíma sabe quem deu? Foi o próprio Jacques Thiériot, na mesa do Gigetto [restaurante em São Paulo]. Foi aí que eu fui pegar. Peguei e li”…

Nota
[1] Entrevista a Nélson de Sá e Marcelo Rubens Paiva. In: Caderno Mais!, de 6 de fevereiro de 2000.

Luiz Ruffato

Publicou diversos livros, entre eles Inferno provisório, De mim já nem se lembra, Flores artificiais, Estive em Lisboa e lembrei de você, Eles eram muitos cavalos, A cidade dorme e O verão tardio, todos lançados pela Companhia das Letras. Suas obras ganharam os prêmios APCA, Jabuti, Machado de Assis e Casa de las Américas, e foram publicadas em quinze países. Em 2016, foi agraciado com o prêmio Hermann Hesse, na Alemanha. O antigo futuro é o seu mais recente romance. Atualmente, vive em Cataguases (MG).

Rascunho