Silêncios

Diante do silêncio do outro, muitas vezes ficamos perdidos, tentando decifrá-lo, desviando-nos dele e ofendendo-nos
Ilustração: Denise Gonçalves
01/07/2021

A palavra silêncio tem origem indefinida. Não surpreende. Silêncio é mistério, tanto por aquilo que oculta — o que não está sendo dito? — como pelo que significa. Pois há inúmeros sentidos nessa ausência de discurso; ou, para começar, poderia dizer que não se trata de ausência alguma, mas da presença de um vazio.

A palavra é tão soberanamente onipresente, que nos habituamos a interpretar o mundo através delas, assim como a comunicá-lo. Diante do silêncio do outro, muitas vezes ficamos perdidos, tentando decifrá-lo, desviando-nos dele e ofendendo-nos. Raramente o aceitamos. O costume é preferir o silêncio da natureza, de uma paisagem ou o silêncio necessário a algum evento: no cinema, num funeral, num templo. Já aquele que não se justifica, que simplesmente acontece, esse é difícil de assimilar.

O silêncio pode ser exercício de poder: você se chateia com alguém, vai lá, desabafa, xinga, exige resposta, quer discutir e a pessoa se cala. É terrível e a derrota é certa. Você sai duvidando se a pessoa não tinha razão em tudo o que disse sobre você. Mas esse poder pode ser benéfico também, como no caso do silêncio dos psicanalistas — inegavelmente poderoso —, das mães, dos mestres. Pode ser um estímulo à reflexão e à reparação, casos em que as palavras do interlocutor teriam um efeito mais anestésico do que desafiador.

O silêncio pode ser amoroso e epifânico. Diante de uma emoção expansiva indescritível, qualquer palavra parece insuficiente para dar conta da dimensão desse encontro. Olhar nos olhos de alguém em silêncio expressa mais e melhor do que codificar a emoção em formulações que, pela própria sequência em que se colocam, já empobrecem a súbita retirada do tempo.

Da mesma forma, ele também pode ser expressão de horror. As emoções constritivas — medo e pavor — provocam sensações até físicas de recolhimento e isolamento. Cenas do terror natural e, principalmente, do terror humano, são igualmente indizíveis e o silêncio diante delas é a confissão do humano que existe em nós, incapaz de organizar um discurso que as atenue.

Há o silêncio curioso e inocente. Uma vontade de saber mais, de pesquisar e perscrutar, com o espanto típico de quem não sabe e assume esse desconhecimento. Esse silencioso observa, contempla e, principalmente, ouve. Trata-se de uma atitude humilde, que pode se perceber nas crianças, mas também nos aprendizes, seja nos que ainda não sabem, mas também nos que já sabem demais e, por isso mesmo, põem-se em estado de escuta, como Sócrates antes de morrer.

E há o silêncio contemplativo, meditativo e filosófico. É preciso muito tempo e lentidão para processar tanto o conhecimento como sua ausência — o vazio. As palavras intervêm como engrenagens rápidas, querendo facilitar ou resolver coisas que estão além ou aquém delas e é preciso evitá-las para penetrar na vertigem desses abismos. Silêncio e tempo é um par inseparável e a velocidade dessa relação é sempre lenta.

O silêncio pode ser agressivo e irônico, quase sempre acompanhado de um olhar que o corrobora. É semelhante, mas não idêntico, ao silêncio de poder, pois este nem sempre agride. A raiva, como outras emoções intensas, é quase antagônica ao discurso organizado e, para não apelar para a violência física, muitas vezes recorre-se à violência representada pela ausência do verbo. Diante de um interlocutor silenciosamente irônico, a reação é de impotência; ele se recusa ao diálogo. O problema com esse silencioso é que, muitas vezes, é ele próprio a se agredir.

Silêncio pode ser assentimento. “Quem cala consente.” Como na canção Valsinha, de Chico Buarque, nenhuma palavra é necessária para que o casal saiba tudo o que quer fazer e que efetivamente faz. Para coroar seus gestos mudos, até o dia amanhece em paz, também ele concordando com a inutilidade das palavras. Olhamo-nos, concordes e prescindimos da fala para saber que pensamos e sentimos em uníssono.

O silêncio metafísico, na tentativa de comunhão com o divino ou o inefável, é quase uma resposta do corpo à imensidão. Somos nada e nossas palavras podem soar como as conchas produzidas pelos moluscos: carcaças que protegem e disfarçam. Se há um anseio por alguma verdade mística, a ausência de palavras parece nos aproximar dela com mais sinceridade do que se formos munidos de palavras. Orar em silêncio, afirmam pregadores de muitos credos diferentes, é mais sincero do que gritar a fé aos quatro ventos.

Mas não se pode esquecer do silêncio hipócrita, conivente e omisso. Calar-se para não se comprometer e para proteger-se de alguma possibilidade de incriminação. Quantas testemunhas de horrores, de crimes menores ou maiores, não silenciam, quando podiam contribuir para punir os culpados? São os funcionários da morte, aqueles que nunca se sentem culpados, pois não são agentes, apenas testemunhas. Encontram justificativas que os convencem da necessidade de omissão ou nem isso. Empanturram-se do mal necessário, da banalidade do mal.

Temos, também nós testemunhas, assistido diariamente ao espetáculo desse silêncio. É opção de cada um, agora, diante do pior exemplo de todos esses silêncios, calar ou, para se opor ao silêncio omisso, gritar. O grito, também ele além da linguagem, liberta e anuncia. Anuncia um tempo em que todos silenciaremos. Em homenagem aos mortos desses últimos anos de pandemia, mas também numa comunhão assertiva. Será o silêncio de nossa vitória.

Noemi Jaffe

É escritora, doutora em literatura brasileira pela USP e coordenadora do Espaço Cultural Literário Escrevedeira. Autora de O livro dos começos, Írisz: as orquídeas e O que ela sussurra, entre outros

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