Reacomodação

Quem sabe um dia vou contar aos meus netos, com humor, que o Brasil foi presidido por um assassino louco e que andávamos mascarados pelas ruas
Ilustração: Fabio Miraglia
01/05/2021

Minha mãe contava que, em Auschwitz, ela dormia numa mesma cama com mais onze pessoas. E ria: quando um se virava, todos precisavam se virar junto. Ela não entendia como tinha conseguido sobreviver ao frio com tão pouca roupa. Depois de ter sido punida por um roubo de manteiga que nem tinha sido ela a praticar, carregando uma pedra pesada sobre os ombros por algumas horas, seu joelho infeccionou e nem ela mesma compreendia como foi possível curá-lo. Ela passou frio, fome, viu seus pais morrerem na câmara de gás e sobreviveu porque a guerra acabou e ela foi salva pela Cruz Vermelha. Quando eu era pequena, ela me contava essas histórias, para surpresa de todos e especialmente minha, com uma dose de humor. Isso acontecia, penso, principalmente pelo fato de que ela tinha sido salva e porque as coisas pelas quais ela passou depois da guerra eram carregadas de aventuras e emoções.

Essas memórias são parte constitutiva da minha personalidade e sempre tomei minhas decisões mais importantes, mobilizada, de alguma forma, por experiências que não eram minhas, mas dela e que, mesmo assim, marcaram meu corpo e vida.

Sempre que raspo meu prato — e isso é todo dia — imagino minha mãe sem comer durante a guerra; sinto tremenda culpa por desperdícios vários; não dramatizo demais machucados e quedas, nem meus e nem mesmo dos meus filhos.

Por isso, por exemplo, não consigo passar por uma caçamba sem olhar para dentro e ver se há ali algo aproveitável; sempre que raspo meu prato — e isso é todo dia — imagino minha mãe sem comer durante a guerra; sinto tremenda culpa por desperdícios vários; não dramatizo demais machucados e quedas, nem meus e nem mesmo dos meus filhos; sou bem tolerante à dor e não me interesso por luxos. De algum modo, sempre me preparei para a possibilidade de que alguma catástrofe pudesse se abater sobre nós e, quando meus filhos nasceram, a primeira coisa que pedi a — quem? — foi que eles não passassem por uma guerra.

E ainda assim, nunca poderia imaginar que fosse passar pelo que estamos passando e nem que me sentiria tão despreparada para isso.

Estou despreparada para o isolamento, para as distâncias, para a repetição, para o medo do presente e do futuro, mas especialmente despreparada para a impotência e para o ódio.

Trata-se de uma combinação perversa de sentimentos simultaneamente intensos e negativos, que exigem de cada um de nós muitas doses de sabedoria, paciência e concentração que, no dia a dia, são simplesmente impossíveis de praticar.

Sinto que me tornei dependente do ódio que dirijo ao presidente. Sei que estou viciada, que preciso me abastecer de notícias que sobejam, todos os dias, para nutrir o meu ódio e que esse sentimento representa, na verdade, uma defesa quase pueril contra minha impotência. Adoto estratégias, deixo o celular longe de mim, não leio os jornais, mas o efeito é curto e inócuo. Meu ódio parece independente e, ao mesmo tempo, vital. Sei que não é e que ele só corrói a criatividade e os afetos expansivos de que preciso e os outros também.

O medo oscila: uns dias penso que vou morrer, que todos vão morrer e que não haverá solução para nada, que o Brasil vai virar um grande campo de concentração e noutros piso no chão e sei que isso vai passar, há de passar, como até a guerra passou para minha mãe.

A impotência é atroz. Não podemos sair às ruas e não podemos ajudar a quantidade de pessoas que, cada vez mais, passam fome e precisam de auxílio.

Impotência gera raiva, que gera medo, que gera impotência, que gera.

Adianta pensar naquilo por que minha mãe passou, bastante pior do que aquilo que estamos passando?

Não adianta no sentido de consolar. Afinal, o real é o aqui e o agora e sua dimensão é única. É tolo comparar desgraças. Mas, por outro lado e na medida do possível, o conhecimento íntimo do que ela viveu reacomoda todos esses sentimentos na alma. Não há como ser diferente e não há como não sentir ódio, medo e impotência. Eles são inevitáveis e, eu diria, necessários. O que é preciso é reconhecê-los e dimensioná-los na escala do real. Se as mulheres do campo de concentração, antes de dormir, narravam receitas de comidas umas para as outras; se minha mãe pôde roubar quinino da cozinha para dar para um doente de cólera, também eu tenho me emocionado com as aulas pelo Zoom; tenho escrito coisas que nunca imaginei; tenho me relacionado com os filhos de uma forma diferente e tenho descoberto receitas que divertem os dias, além de procurar canais dos mais diferentes tipos para ajudar a quem precisa.

É hábito da mente sobrevalorizar os afetos coibidores. Eles gritam mais alto e afetam mais o corpo.

Quem sabe um dia vou contar aos meus netos, com certa dose de humor, que o Brasil foi presidido por um assassino louco e que andávamos mascarados pelas ruas. Ao que eles pedirão que então eu mude logo de assunto e conte a Branca de Neve mais uma vez.

Noemi Jaffe

É escritora, doutora em literatura brasileira pela USP e coordenadora do Espaço Cultural Literário Escrevedeira. Autora de O livro dos começos, Írisz: as orquídeas e O que ela sussurra, entre outros

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