O totem talento

Se a pessoa quer escrever bem — e não escrever como Shakespeare ou Machado —, ela precisa pensar, antes de tudo, em termos de tempo e dedicação
Ilustração: Denise Gonçalves
28/02/2021

Muita gente gostou da série em que Martin Scorsese conversa com Fran Lebowitz [Faz de conta que NY é uma cidade, na Netflix]. Não posso dizer o mesmo. Sempre tive certa desconfiança com quem se coloca no mundo somente a partir da desconfiança ou, melhor dizendo, da ironia. Da minha parte, prefiro mais a credulidade e a entrega.

Num dos episódios, comentando o fato de que sua mãe queria lhe dar um violino durante sua adolescência, a escritora diz que recusou. Disse à mãe que poderia se tornar uma violinista melhor, mas nunca uma violinista de talento porque, afinal, talento não se desenvolve. É algo que se tem ou não se tem.

Essa ideia sobre talento é a mais difundida, quase um totem, misturando a própria definição de talento com a de dom; ou seja, de algo “dado”, “inato”, não passível de aprendizado ou aquisição. Quero discordar.

Etimologicamente, talento vem do grego e significa “balança”. Era numa balança que se pesava o ouro, a prata e é por isso que, mais tarde, talento também se tornou o nome de uma moeda. A derivação para a acepção de “dom” vem da ideia da inclinação da balança: alguém que está inclinado a alguma coisa.

Pois então. Inclinação tem a ver com desejo e não com genética, ou não somente. Vamos partir dessa ideia. Alguém se sente identificado com alguma forma de expressão, digamos, a escrita literária e gostaria de desenvolvê-la. Temos aqui dois termos fundamentais: identificação e gosto. Penso que eles são suficientes para que se possa trabalhar no sentido de desenvolver o afamado, aclamado e mitificado talento.

Penso que talento é um processo e não um resultado ou um dado imponderável. Se a pessoa quer escrever bem — e não escrever como Shakespeare ou Machado de Assis —, ela precisa pensar, antes de tudo, em termos de tempo e dedicação. Muito de ambos. E então passar a ler muito, com atenção redobrada e apuro analítico. Copiar, imitar e estudar aquilo de que gosta e entender aquilo de que não gosta. Precisa adquirir disciplina de práticas de escrita, com regularidade e ritmo. Dedicar-se a exercícios de inventividade, gramática, restrições e desafios. Escrever e descartar, escrever e guardar, escrever e reescrever. Precisa compartilhar o que escreve com amigos, com escritores e com o seu público, expondo-se a críticas, desde as mais generosas às mais virulentas. Precisa pesquisar muitos assuntos, atualizar-se, viajar, caminhar e conversar com todo tipo de gente. Precisa aguçar os ouvidos e prestar atenção às conversas que acontecem na rua, no ônibus, nos zooms, nas filas de supermercado. Precisa se concentrar em detalhes antes despercebidos — gestos, caretas, idiossincrasias, pequenos objetos, sombras. Precisa ter paciência e experimentar outras formas de compreender o tempo, sem se submeter à tirania da aceleração e da busca por resultados. Precisa entregar-se ao inesperado, ao acaso, tentar diminuir o desejo de controle sobre tudo e permitir se deixar controlar pelo que surge: encontros, tempestades, lugares estranhos e coisas desconhecidas.

E depois de tudo isso surge o talento?

Não. Tudo isso é o talento que, aliás, não é algo que se conquista e se basta. É algo que se constrói o tempo todo, mesmo depois de tornar-se um escritor até consagrado.

Nada disso funciona matematicamente, claro. Mas posso garantir que esse processo, se praticado com constância e autenticidade — ou seja, com a pessoa interessada no processo e não nos efeitos — vai criar habilidades até então desconhecidas para o próprio sujeito. Ele vai passar a reconhecer, em si mesmo, novidades, desejos e faculdades que não tinha experimentado. Vai perceber que seu corpo se inclina mais a algumas atividades de concentração e de disposição para combinações inusuais de palavras, frases e estruturas. A mão deslizará mais pelo papel ou pela tela e a mente se tornará mais criativa e produtiva, com mais pensamentos e associações que virão das próprias palavras e não somente das ideias. E o que é mais importante: muitas vezes será a mão a escrever e não exclusivamente o dono da mão. São momentos raros, mas que existem.

Parece ridiculamente mágico falar assim como estou falando, já que toda essa descrição é bastante abstrata. Mas não é. O talento é a combinação de práticas desafiadoras, processuais e renovadas, por alguém disposto à mudança. Combinando imaginação, intuição, informação, experiência, memória, acaso, consciência e inconsciente, circunstância, além de dedicação, estudo e regularidade, a mente é capaz de produzir coisas totalmente inesperadas. Tenho inúmeros exemplos concretos, entre meus alunos, de como isso é verdadeiro. Pessoas que, do fundo dos meus preconceitos, considerei totalmente inaptas para a escrita, revelaram aptidões surpreendentes até para si mesmas e para o grupo. Nada que, uma vez percebido, prescinda de continuidade e aprofundamento. Mas não é algo que se perca, já que não é fruto de nenhuma bênção ou graça.

Sim, Fran Lebowitz, talento se adquire. Isso quer dizer que qualquer um pode ser tornar um Guimarães Rosa? É claro que não e nem é esse o objetivo. Aliás, seria bom se, ao menos para a arte, esquecêssemos um pouco essa palavra Macdonaldiana: objetivo. Não sei o objetivo. Sei que quero descobrir, em mim, aquilo que não sou, aquilo que posso ser, aquilo que posso estar; quero descobrir os outros de mim e os outros dos outros.

Fran, você deveria ter aceitado o violino e, talvez, hoje não fosse tão desconfiada.

Noemi Jaffe

É escritora, doutora em literatura brasileira pela USP e coordenadora do Espaço Cultural Literário Escrevedeira. Autora de O livro dos começos, Írisz: as orquídeas e O que ela sussurra, entre outros

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