Jogar conversa fora

Que pelo menos a literatura nos liberte da conspiração triangular: rápido, prático e útil
Ilustração: Eduardo Mussi
01/11/2022

Digressões são desvios da rota principal, movidas por lembranças, associações, surpresas e acasos, que levam o leitor a passear gratuitamente por caminhos vicinais. Acho bonito esse adjetivo “vicinal”, que representa a qualidade de ser vizinho. Pois então, as digressões são as vizinhas do fio central da narração e, como toda vizinha, elas gostam de fofocar, ir além do estritamente pragmático começo-meio-fim, sentar na varanda do texto e jogar conversa fora.

“Jogar conversa fora”, aliás, é uma das atividades mais saudáveis do convívio humano, já que as conversas úteis são, quase sempre, desinteressantes, por portarem apenas um único objetivo, obrigadas a usarem uma venda lateral para não se distraírem. Esse é o caso, por exemplo, dos livros cujo maior interesse é levar o leitor a um desfecho surpreendente. Diante do utilitarismo que tem tomado conta de tudo, do comércio aos amores, “jogar conversa fora” é um ato revolucionário por sua inutilidade. E, aliás, é da inutilidade que surgem descobertas científicas, inventos tecnológicos, a arte e o sexo.

Como com tudo na vida, a parte mais atraente é o processo e não a chegada, já que esta última pode sempre mudar em função da maneira como o processo é conduzido. O melhor da escrita é ser surpreendido pelas narrativas vicinais e, por causa delas, ir constantemente transformando as ideias que tínhamos.

Outros termos utilizados em português para se referir ao processo digressivo cotidiano é “falar abobrinhas” ou “encher linguiça”, expressões que sintetizam, pejorativamente, essa atividade fundamental da espécie. Falar abobrinhas remete à ideia de tratar de assuntos menores e desconectados, como o cabeleireiro, o último filme, o último caso, misturando receitas de comida com receitas de médico, insatisfações conjugais, medos e a cor do esmalte. Já encher linguiça se refere mais à prática de rechear uma conversa ou um texto com coisas consideradas desnecessárias.

Mas quem determina o que é necessário e o que não é?

O hábito.

Somos determinados pelo hábito, desde a mesa no centro da sala de visitas com livros de capa dura, até a composição das frases que dizemos e escrevemos, passando pelo sonho de um emprego estável e uma família com dois filhos, uma menina e um menino. Esperamos que as frases de um livro sigam determinada rota, que cumpram sua função de nos levar à frase seguinte, dando continuidade à frase anterior e achamos (sem saber por quê) que essa é natureza das frases, que elas já nasceram assim. Por isso, quando lemos livros de Gertrude Stein ou Oswald de Andrade, por exemplo, a reação sintomática é rejeitá-los por estranhos. É compreensível: “estranho” significa “de fora” ou “não pertencente” e o instinto pede que cada um se proteja daquilo que não pertence ao grupo. Acontece que nós, como humanos esclarecidos, deveríamos observar essa reação primária e pensar: “mas por que rejeito o estranho?”, “não é preconceito da minha parte?”, “será que esse estranho não está a me trazer algo novo, surpreendente, algo que poderia me renovar?”.

Saio para ir ao trabalho: tenho um horário e, por isso, meus gestos são todos cronometrados. Preciso sair de casa às 8h para chegar lá às 9h30. Na rua, no caminho para o ônibus, encontro um cachorro abandonado, aparentando estar doente e faminto. Se der atenção a ele, perco o horário. Decido levá-lo a um veterinário próximo dali, o cachorro melhora, eu o adoto, tenho um companheiro que está comigo há oito anos. Mas faltei ao trabalho e corri o risco de perdê-lo.

É assim com as frases também.

No dia 7 de setembro de 1876, os leitores de Machado de Assis são convidados, pelo autor, a comemorarem mais um aniversário do grito do Ipiranga.

“Grito do Ipiranga? Isso era bom antes de um nobre amigo, que veio reclamar pela Gazeta de Notícias contra essa lenda de meio século.” E Machado prossegue versando sobre a História Romana, a insignificância de um nome como Numa Pompílio para a civilização moderna, Lucrécia, Tarquínio, tudo para concluir que lendas são melhores do que histórias autênticas. Por que ele propõe esse desvio, um dos traços mais comuns em sua literatura?

Tim Ingold, antropólogo inglês, fala sobre dois tipos de caminhada: a “caminhada labirinto” e a “caminhada dédalo”. Na primeira, quando perdidos, vamos em busca de uma saída, calculando a mais rápida e prática. Já no segundo tipo de caminhada, estamos perdidos, mas, distraídos de uma saída, começamos a prestar atenção aos becos, às ruas de mão dupla, às pichações, às caçambas, às pessoas que passam, às coisas jogadas no chão: Tarquínio, Lucrécia, Roma Antiga. Caminhada com resultado ou caminhada em nome de si mesma.

Ao optar pela segunda, o escritor se permite passear pelos bosques da ficção, capazes de revelar a si mesmo e ao leitor inutilidades revolucionárias, como lapsos, dúvidas, conexões inesperadas, palavras há muito esquecidas, personagens novos. Quando Guimarães Rosa, amante do inútil, descreve Nhinhinha como alguém “inábil como uma flor”, adjetivo pouco usado para se referir às flores, ele tece o elogio da inabilidade e atribui a ele, inclusive, a razão para o poder de Nhinhinha de fazer seus desejos se realizarem. Tudo o que ela deseja é inútil e, caso adquira alguma utilidade (como fazer chover para fertilizar o solo), o desejo não se realiza. O poder de Nhinhinha se deve a sua distração: ela só quer o que não serve para nada.

Abastecer a literatura de nadas, distrair-se (sair dos trilhos) do trajeto previsto e jogar conversa fora é matéria literária.

Que pelo menos a literatura nos liberte da conspiração triangular: rápido, prático e útil.

Noemi Jaffe

É escritora, doutora em literatura brasileira pela USP e coordenadora do Espaço Cultural Literário Escrevedeira. Autora de O livro dos começos, Írisz: as orquídeas e O que ela sussurra, entre outros

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