Famosos (I), de Rodrigo Garcia Lopes

Os versos de “Famosos (I)” acionam um campo de debates que envolve o clássico conceito de indústria cultural
O poeta Rodrigo Garcia Lopes, autor de “Famosos (I)”
01/09/2020

Sic transit gloria mundi

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Os versos de Famosos (I) (Experiências extraordinárias, 2014) acionam um campo de debates que envolve o clássico conceito de indústria cultural, cunhado por Adorno e Horkheimer em Dialética do esclarecimento, em 1947. Já em 1963, na conferência radiofônica Résumé sobre indústria cultural, Adorno afirma que esta máquina de moldar subjetividades “promove também uma união forçada das esferas de arte superior e arte inferior, que permaneceram separadas durante milênios. Para prejuízo de ambas”. O poema de Rodrigo Garcia Lopes parece funcionar, com doses de humor e zombaria, exatamente a partir desse lugar polêmico que distingue arte superior e arte inferior, disparando incessantes clichês do mundo de celebridades e fofocas, no entanto tendo como “famosos” artistas e intelectuais respeitadíssimos da literatura, filosofia, psicanálise, pintura e história, bem distantes desse mundo de banalidades, superficialidades, intrigas, aparências, preconceitos e vaidades. O efeito desse contraste, de imagens e informações deveras surrealistas e absurdas, nos faz rir e pensar.

Pensar que Sylvia Plath, autora do denso Ariel, tímida, suicida, se exibisse decotada em shopping causa imediato espanto. Aliás, espantosos são todos os versos do poema. A conturbada relação amorosa entre Verlaine e Rimbaud encontra no poema a paz simbolizada pela aliança. Os versos 3, 14, 17 e 21 explicitam a obsessão pela “boa forma”, isto é, pelo padrão de magreza que propagandas bombardeiam no imaginário da população — como se o peso fosse preocupação maior de Jane Austen, Oscar Wilde, Gertrude Stein e Oswald de Andrade (esse, a propósito, riu de si mesmo no hilário Epitáfio, em que redondilha remete ao verso do poema e ao visual do poeta). A provocação seguinte traz Lou Salomé declarando asco a Nietzsche, com alusão à franquia BBB, de grande popularidade, tal como Lost e A fazenda, de que participariam Beckett e Whitman. Nada mais inverossímil. A literal (e simultaneamente metafórica) impossibilidade de que os artistas citados pudessem participar eles mesmos dos eventos em que no poema estão inseridos produz o choque de admitir que outras pessoas — comuns, do cotidiano, anônimas, e mesmo muitos artistas conhecidos e “populares” —, sim, são flagradas em shopping, exibem alianças de noivado, mostram um tormento extremo se ficam “acima do peso”, concorrem para participar de programas e séries como os três supracitados.

O festival de insanidades inusitadas continua, e os leitores somos envolvidos por uma curiosidade (e certo mal-estar) acerca de qual boutade, chiste, pilhéria virá a seguir. E vemos a poesia minimalista e elegante de Dickinson se misturar à valorização da bunda. E o arredio e boêmio Baudelaire às voltas com fãs. E o solitário e misantropo Salinger interagindo no Facebook. E assim por diante. Verso a verso, há setas apontadas para a massificação, para a semiformação (Theodor Adorno), para a sociedade do espetáculo (Guy Debord), para a aldeia global (Marshall McLuhan), para o show do eu (Paula Sibilia), para a extimidade (Jacques Lacan), para uma libido a um tempo liberada e reprimida (Herbert Marcuse e Michel Foucault) e tantos outros alvos afins à noção de indústria cultural.

No excelente artigo Indústria cultural: o empobrecimento narcísico da subjetividade, Verlaine Freitas desenvolve reflexões a partir da “ideia de Adorno de que toda a cultura de massa é narcisista, pois suas produções visam a glorificar a imagem que o indivíduo faz de si mesmo”. Noutras palavras, dirá Verlaine, a indústria cultural produz uma ilusão no sujeito (indivíduo) de que ele é sujeito (senhor) de sua vontade, quando seu gosto, sua opinião, suas vontades, seus desejos são modelados passo a passo, de modo que o sujeito mais se assemelha a um fantoche, ou um objeto daquilo que imagina dominar: “Trata-se de um logro sistematicamente impingido aos consumidores da cultura de massa, tratados como se fossem sujeitos na fruição das obras, quando na verdade não passam de encruzilhadas de tendências do movimento capitalista cada vez mais globalizado”. As cenas, as frases, os interesses, os locais, tudo nos versos de Famosos (I) expressa o imaginário pasteurizado, o ego empobrecido e fraco de quem se diverte e se ilude com fofocas, banalidades, intrigas de um mundo de celebridades que funciona à base de shoppings, bundas, BBB, facebook, twitter, baladas, trivialidades. Longe, muito longe — e é isso que espanta, incomoda e leva ao riso — está a sofisticação de pensamento e de obras como as de Marx, Bandeira, Borges, Debussy, Freud, Maiakovsky, Cruz e Sousa, Duchamp, Wittgenstein e todos os demais. Não à toa a epígrafe latina (traduzida em nota no próprio livro): “Assim passa a glória do mundo”. Há glórias — e glórias.

Se os sujeitos assujeitados da indústria cultural, que alimentam o próprio engano de que se nutrem, se encontram nas cenas banalíssimas do poema, contudo a densa história inscrita nos nomes das “celebridades” são de outra monta, outra estirpe, outro mundo. Esse choque provoca um total desconcerto: alguma coisa está fora da ordem. O verso 22 — “‘Se o porteiro do prédio também pode ir assistir aos musicais da Broadway, então qual a graça?’, diz Karl Marx em rede social” — é mais um exemplo, entre todos, desse descompasso constrangedor entre fala/cena e personagem. Com certeza, Rodrigo Garcia Lopes se divertiu à beça, elaborando esse puzzle desvairado e engraçado, que aciona em nós o riso e o siso (tanto que fez Famosos (II), com Clarice, Picasso, Machado, Joyce e outras celebridades da dita — sem consenso algum — alta cultura). Os artistas que ele convoca à fama em seu poema traduzem um pouco a reconhecida diversidade (formal e temática) de sua obra, já volumosa e de prestígio, iniciada com Solarium (1994).

O poema Zeitgeist, de Nômada (2004), em seu primeiro dos 26 versos (começados com gerúndio), diz: “Nocauteando celebridades disfarçadas de pinguins”. Dez anos antes de Experiências extraordinárias, e dos Famosos I e II, o poeta já punha tento nesse mundo, máquina de produzir celebridades fugazes, efêmeras, epidérmicas, que se deve nocautear. O poema em foco é um soco, que dói e que dá prazer, quando percebemos que as celebridades que importam (pois desmontam sistemas estereotipados da onipresente indústria cultural) e duram têm estirpe e estilo. Parodiando outra celebridade, os “personagens” de Rodrigo G. Lopes são, mais que famosos, famigerados, considerando que se disfarçam com o próprio nome que portam. Isso, sim, se diz no conto de G. Rosa, “merece louvor, respeito”. Por isso, o que todo poeta quer, feito o célebre conto do mineiro, “uma hora destas era ser famigerado — bem famigerado, o mais que pudesse!…”. Mas, aí, são outras estórias, outras famas, outras glórias.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

Rascunho