Kenzaburo Saito

O mundo do desconhecido autor japonês sobrevive às custas de personagens cotidianos, situações tolas, vidas risíveis se contamos apenas a estupidez aparente
01/08/2003

Yugen é o termo japonês para expressar o que está abaixo da superfície. E é isso que me interessa, justamente isso, o que está abaixo da superfície.

Diferente do mundo cinematográfico, repleto de explosões, tiros e situações desesperadoras, ou dos best sellers nos quais não faltam amores fadados à dor, reviravoltas, terríveis vilões, heróis e heroínas de complexidade comparável a um macarrão alho e óleo, o mundo de Kenzaburo Saito sobrevive às custas de personagens cotidianos, situações tolas, vidas risíveis se contamos apenas a estupidez aparente.

— O que eu procuro revelar é a escuridão que está sob a superfície. Esse mundo estranho que não nos é dado ver a olho nu, apenas suspeitar.

Sentado frente ao copo de conhaque, respirando com dificuldades devido à perda do pulmão esquerdo, senhor Saito insiste que eu não o chame de senhor.

— O mais respeitoso que pode fazer por alguém de minha idade é tratar-me como um igual. Se não for possível, pelo menos fingir. Aceitarei de bom grado seu mínimo pecado.

Do bolso do paletó, tira um maço de Marlboro e acende um.

— O que não me mata me fortalece,

traga devagar, deixando que a tosse cresça na mesma medida que o rubor em seu rosto.

— Eu acredito em Nietzsche mais do que em Jesus Cristo ou Buda. Esse é meu carma, talvez o carma de toda a minha geração. Tentamos demais ir além de nós mesmos, criar um mundo ideal, cheio de charme e glamour. A maioria de nós nunca entendeu que charme e glamour não estão de acordo com a realidade. Alguns ainda conseguiram abrigar-se sob o manto protetor da arte. Outros morreram no desespero sem deixar herança.

Kenzaburo Saito nasceu em 1922, em Tóquio. Filho de família de posses, formou-se na Faculdade Imperial de Tóquio e, apesar da guerra, não precisou lutar.

— Meu pulmão teve mais utilidades fora de mim do que em meu peito.

Sua risada é abafada pelos tremores nos cantos de seus lábios.

— Você não fuma, nem bebe?

Respondo que não, que parei alguns anos atrás, que fiz uma escolha e a sigo ainda hoje.

— Vocês jovens são estranhos. Querem viver muito, viver com saúde. Se quando eu era jovem alguém dissesse isso, admitisse ter tal sonho, seria no mínimo tratado como estúpido. Para que ter vida longa em um mundo miserável como o nosso?… se bem que, como você vê, ainda estou vivo.

Enquanto ri, pergunto se conheceu Mishima.

— Todos conheciam Mishima Yukio. Alguns o admiravam, outros consideravam-no afetado demais, mas, de algum modo, todos o invejavam. Quem de nós podia dizer blasé que seu último romance havia sido traduzido para o inglês? Apesar de tudo éramos anglófilos, no mínimo francófilos. Amávamos tanto o ocidente, a cultura forjada na Grécia, que acabamos nos tornando homossexuais… ou pelo menos foi essa a desculpa.

O cheiro do cigarro me incomoda, por isso apóio meu braço no encosto do sofá e deixo meu rosto aproximar-se da janela, de onde vem uma suave brisa.

— Você é gay?

Respondo que não, o que parece decepcioná-lo.

— E mesmo assim escreve. Os tempos realmente mudaram.

Kenzaburo Saito tem apenas um livro editado, e editado uma única vez: Flores abertas, a ferida. Seus contos, centenas, foram publicados em diversas revistas literárias, principalmente por clubes universitários.

— Não há um motivo específico. Se eu pudesse voltar no tempo, jamais lançaria aquele romance. Não preciso disso, nunca precisei. Tenho dinheiro o bastante para viver. Mesmo hoje, se ainda me interessasse por sexo, poderia comprar algum garoto.

Peço um capuccino, que vem acompanhado de dois biscoitos.

— Sua família, como é? Não responda se for intromissão minha. Você já deve ter lido sobre minha adolescência, sobre o que aconteceu com meus pais, por isso minha pergunta deve soar doentia, não é?

Apesar de sentir a oportunidade, o momento ideal, a abertura para a pergunta, acovardo-me e apenas digo que não venho de família rica, se bem que meus bisavós estão enterrados no cemitério mais exclusivo de Tóquio.

— Não se sinta envergonhado por isso. Se eu tivesse tido filhos, também não deixaria nada para eles. Não porque odeie crianças, só não acho justo. Meus pais me deram tudo: nome, dinheiro, estudo, tudo, mas não pude ser feliz, então, quem poderá ser? Deve ser por isso que me interesse pelas vidas de pessoas simples, operários, burocratas, estudantes, gente que não tem futuro, muito menos passado, que lutam para construir algo, algo que irá ruir ao mais leve sopro, ao mais fraco tremor. Você leu algum conto meu?

Listo alguns.

Fantasmas, meio-dia é um bom exemplo. A vida de cultivadores de daikon (rabanete). O que pode ser mais tolo que cultivar uma raiz de daikon?

Para a crítica japonesa, o grande mérito de Saito não é o enredo de suas histórias, mas o modo como as constrói. Menos que as reviravoltas, tensões ou qualquer possível clímax, o que vale em seus textos é a poesia, seu nonsense, algo revelador e rico em possibilidades.

— Muitos perguntam se devo meu pessimismo a alguma filosofia existencialista. Sartre foi moda na década de 1950. Você nem tinha nascido, mas deve saber. Aquele homem baixo e caolho guiou muitas consciências. Eu mesmo fiz muito proselitismo a partir de seus discursos. Quando a guerra acabou e tivemos que encarar a mundanidade do Imperador, e por conseqüência nossas fraquezas, muitos foram afligidos pelo medo de que o orgulho japonês nada mais fosse que uma máscara, algo criado para ocultar nossa inferioridade. Isso obrigou-nos a buscar substitutos para antigas crenças. Por um lado surgiu um novo tipo de nacionalismo, de outro, viemos nós, sonhadores com o éden ocidental, carentes desejosos de um amante mestiço, que trouxesse a inspiração vitoriosa de Mcarthur enlevado pela estética do aço tocando a carne. É irônico pensar que fomos nós os responsáveis pelo crescimento acelerado da economia japonesa, que por algum tempo fez tremer as potências ocidentais.

A cada cigarro aceso, a voz de Saito fica mais grave e menos audível. Acabo fechando a janela para evitar os ruídos da rua e ouvi-lo melhor.

— Escrever é para ociosos. Poucos conseguem sobrevier pela escrita. É claro que não considero jornalistas como sendo escritores. Relatar fatos, acreditar ser possível ser fiel à realidade por meio de palavras já deixa claro o tamanho da estupidez dessas pessoas. Se bem que ouve tempo em que eu tinha essa visão. Foi durante meus anos de faculdade, quando já sabíamos que seríamos derrotados e, mesmo assim, ouvíamos atento as mensagens que vinham pelo rádio e nas páginas manchadas dos jornais. Havia muita beleza naqueles discursos apaixonados, insuflando o povo a manter firme suas convicções, alertando a todos que em todos os momentos de perigo o céu interferiu em favor do povo japonês. Mesmo sabendo que eram mentirosos, não havia como negar isso a eles. Foi a partir deles que compreendi a distância entre as palavras e a realidade, e por isso decidi tornar-me um escritor. Se não havia limites para o texto, então porque me sujeitar ao que tinha ao meu redor? As palavras não mudam o mundo, apenas o engana.

Saito pede mais um conhaque, apesar de mal ter tocado no primeiro.

— Na verdade os médicos me proibiram. Peço apenas por hábito. Tem certeza de que não quer um?

Ele empurra o primeiro copo em minha direção, ao que impeço colocando a mão no caminho.

— Jamais vou entender qual o prazer de se negar prazeres?

Largando o tom tranqüilo de um segundo atrás, Saito levanta-se chacoalhando a mesa.

— Quantos anos você acha que ainda tem pela frente? Quantos? Você não percebe que apesar de eu ser muitos mais velho que você, meio século mais velho, não existe coerência na morte? Daqui a um instante você pode estar pálido e frio enquanto eu continuo nesta existência miserável! Não entende que não há justiça ou retorno por merecimento?!

As pessoas ao redor voltam-se para nossa mesa, com olhares curiosos, porém, sem reprovação. Nem mesmo o garçom que vem limpar o conhaque derramado diz palavra alguma. Quieto, ele passa o pano cuidadosamente até que não reste uma gota sequer fora dos copos.

— Você quer outro capuccino?

Saito pergunta, sentando-se novamente, como se nada tivesse acontecido.

— Você não quer saber como construo meus textos?

De quatro da tarde até as seis, sem que eu o interrompesse uma vez sequer, Kenzaburo Saito me explica, em detalhes, a lógica de sua escrita. Tomando o cuidado de diferenciar a escrita tradicional japonesa — kanjis — dos romanjis.

— Nosso sistema obriga um outro tipo de memória, um outro tipo de lógica, ou seja, toda uma percepção diferenciada da realidade. A afetação de nossas imagens poéticas decorre disso. Para um povo que tem no ato de escrever um manifesto estético, nada mais compreensível.

Enquanto tomo mais dois capuccinos, escuto atento a necessidade de se construir corretamente um personagem.

— Se o personagem é crível, a história constrói-se ao seu redor naturalmente. É essencial que haja vitalidade na construção daquele que irá passar pelos percalços da história. E mesmo que não haja percalços, a impossibilidade de vê-lo como inexistente já o torna apetecível à leitura. Quando escrevo, dou profundidade ao personagem, não ao enredo. Somente medíocres usam o enredo para reafirmar a força de seu personagem. Eu não vejo necessidade disso. O bom personagem sustenta-se apesar da banalidade da vida ao seu redor.

Pergunto se esse desapego pelos grandes enredos não decorre de sua vida ter sido por demais interessante.

— Você gostaria de estar em meu lugar?

Saito não ergue a voz uma vez mais, apenas apaga com firmeza o cigarro no cinzeiro.

— Você gostaria de ter feito o que fiz, sobrevivido ao que sobrevivi, enfrentado o que enfrentei? Pelo seu vacilo vejo que não. Então, com que direito faz-me uma pergunta dessas?

Peço desculpas, que Saito aceita, continuando a conversa do ponto em que parou.

— Percebi isso quando fiz quarenta anos. Eu já havia publicado aquele romance e tinha alguma notoriedade. Mas eu sabia que tudo era resultado de minha desonestidade. No processo de ver as palavras como uma realidade distante do mundo real, também me deixei carregar pelo turbilhão emocional que assolava todos os homens de meu tempo. Diante daquele vendaval político, cultural e econômico que era o Japão e o mundo da década de 1960, fiz o que devia fazer. Em vez de enfrentar meu destino, comprei um destino alheio. Em vez de escrever o que já estava em mim, copiei desavergonhadamente autores que admirava. Jean Genet, Sartre, Sthendal, Faulkner, Mann. Com isso, alcancei um pequeno status, porém, sabendo que nada daquilo era real. Assim como eu acreditava que as palavras não eram capazes de nem ao menos tocar a realidade, eu me vi incapaz de suportar a possibilidade de não ter um real talento. Mas, aos quarenta anos, desisti.

Foi nessa época que Saito desapareceu da cena artística, pelo menos fisicamente. Seus textos, cada vez mais prosaicos — ou aparentemente prosaicos — continuaram a ser editados em revistas literárias. Sem uma sazonalidade específica, quando menos se esperava lá estava um pequeno conto, um poema, um capítulo de novela. E se alguns críticos chegaram a duvidar que aqueles textos realmente pertenciam a Kenzaburo Saito, isso acabou tornando-se a grande fonte de seu carisma.

— Os especialistas liam meus textos e não entendiam o que havia ali. Que motivo levava um escritor de certa notoriedade a perder tempo contando histórias bobas, como a da criança que sai para passear e vê um gato ser morto atropelado; ou a história da dona de casa que espera seu marido chegar, preocupada se pagou ou não a conta de luz. No começo ninguém entendeu o que aconteceu.

Como outros reclusos famosos, Saito desapareceu do mundo artístico e literário. Muito raramente era visto pelas ruas de Tóquio, e quando isso acontecia, era sempre em um país distante, longe do Ginza — bairro famoso pelas casas noturnas. Com isso, mais o desconhecimento de sua residência — com vários apartamentos pela cidade, era praticamente impossível localizá-lo com precisão — só restou à mídia especular. De vez em quando, mesmo hoje, ainda aparece algum artigo relatando o passado de Saito, desenvolvendo uma teoria nova que explique seu comportamento ou, na maioria das vezes, requentando uma idéia antiga. A mais corriqueira é aquela que dá como causa principal de sua casmurrice a morte de seus pais, mais precisamente o assassinato.

Foi em 17 de fevereiro de 1936 que a polícia descobriu os corpos. Uma vizinha estranhou não mais ver a família Saito, sendo que ninguém sabia se tinham viajado. Amarrados pelos pés e pelas mãos, tanto o marido quanto a esposa estavam em avançado estado de putrefação e com marcas de tortura. O único filho foi achado nu, trancado em seu quarto. Ao ser libertado, não soube dizer o que havia acontecido, exceto que na semana anterior, ao acordar, achara a porta fechada. Perguntado porque não gritou por socorro, respondeu que achou ser castigo por algo que havia feito. Perguntado se havia feito algo, ele não soube responder.

Perto de nove horas, Saito levanta-se para ir ao banheiro. Ao retornar, avisa que precisa ir embora.

— Espero que minha entrevista sirva de algo, se bem que não vejo qual interesse meu nome irá despertar aos seus leitores, ainda mais que meus livros jamais serão publicados em seu país. Como você sabe, após a minha morte, meus editores estão expressamente proibidos de reimprimir qualquer texto meu.

Pergunto sobre a internet, acrescentando que tomei conhecimento de sua existência por meio dela.

— Nesse caso, apenas posso esperar que respeitem meu desejo.

Antes que saia, peço licença para usar algum texto seu.

— “Pequenos espaços preenchem meus passos, cada vez menores”. Use isso.

Vendo-o afastar-se apoiado pela bengala, tento criar coragem para fazer a pergunta que planejei fazer no momento em que o vi no saguão do aeroporto.

— Agora que o crime prescreveu, que o senhor está velho, por favor, diga, quem matou seus pais?

Mas fico quieto, intimidado pela curva de sua coluna, pelo peso que a assola, pela certeza de que sob a superfície a pressão é ainda maior, pelo medo de que rompendo a bolha os respingos sejam insuportáveis, mesmo para mim.

— Saito-san?

Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho