Uma teosofia carnavalesca (4)

Na peça de Plínio Marcos, a Sociedade Teosófica tende a ser entendida não como religião ou partido político, mas como esforço generoso, solidário e ecumênico
Ilustração: Juliana Montenegro
01/07/2025

Além de uma narrativa conduzida com base em um desfile de personagens com maior ou menor grau de investimento alegórico, Madame Blavatsky, peça de Plínio Marcos, escrita em 1985, também prevê várias cenas breves de entrevistas públicas e de encontros pessoais. No caso destes últimos, a peça destaca duas pessoas decisivas em sua vida madura, a saber: Annie Besant, sua colaboradora e suposta amante, autora de uma Autobiografia e de um opúsculo intitulado Karma — ambos já publicados no Brasil pela editora esotérica Pensamento —, e o coronel Henry Steel Olcott, com quem se casaria legalmente nos Estados Unidos e, ao lado dele, fundaria o controverso Clube dos Milagres, que buscava angariar o patrocínio de americanos ricos para a confecção de sua “obra monumental”, que culminaria com a publicação de A doutrina secreta.

Já no caso das entrevistas encenadas, fica claro que as perguntas dirigidas a Helena são frequentemente hostis: quem pagava as muitas viagens que fazia pelo mundo; se praticava a “baixa magia”; se os “milagres” que protagonizava lhe rendiam dinheiro; se a sua Teosofia negava Jesus; se era verdadeira a suspeita de que fazia espionagem para a Rússia etc. Na dinâmica da peça, tais perguntas capciosas funcionam exatamente com as que faziam os filisteus a Jesus, que Plínio já havia encenado em Dia virá (1967) e Jesus-Homem (1978). As respostas de Helena, por sua vez, explicitam, primeiro, a oposição entre a figura mística de Jesus e as Igrejas oficiais que falavam falsamente em nome dele; depois, a atividade colonialista dos missionários ingleses que desejavam impor pela força a sua religião e cultura aos hindus, povo que considerava “muito mais evoluído espiritualmente que os ingleses”.

Assim, na peça, o tom predominante é inequivocamente apologético em relação às atividades de Helena Blavatsky, enquanto a murmuração ecoada pelos jornalistas era, de forma igualmente explícita, atribuída a preconceitos de gênero, ao eurocentrismo eugenista, bem como à ignorância generalizada em relação às práticas das ciências alternativas baseadas em conhecimentos desenvolvidos no Oriente. Na mesma direção apologética, os patrocínios financeiros recebidos por Helena através do Clube dos Milagres são justificados como forma pragmática de fazer frente aos tremendos obstáculos criados pelo governo inglês contra a sua pregação.

A questão fundamental de Plínio, portanto, não estava em discutir se o Clube dos Milagres produzia fraudes ou não — o que lhe parecia perfeitamente legítimo considerando os malefícios reais que enfrentava —, mas sim em reconhecer a validade de seus propósitos em pelo menos três aspectos: como política anticolonialista, como ação terapêutica a favor dos doentes, e como subvenção material de uma obra capaz de produzir avanços significativos no conhecimento humano —, este último ponto entendido fundamentalmente como uma habilidade de interpretar os acontecimentos históricos em íntima correspondência com experiências espirituais. Assim, na peça, a Sociedade Teosófica tende a ser entendida não como religião ou partido político, mas como esforço generoso, solidário e ecumênico (“uma grande fraternidade”), cuja finalidade é produzir “a reconciliação de todas as religiões”, com base em “verdades eternas”, necessariamente compatíveis com o avanço das ciências.

Em termos dramáticos, no entanto, mais do que os progressos exegéticos de Helena, a peça acentua os ataques crescentes que ela sofre, com acusações de charlatanismo, lesbianismo, espionagem, bruxaria etc. Além disso, em certo momento, os atores passam a encenar as disputas de poder nos bastidores da própria Sociedade Teosófica: um membro quer ser o editor do jornal teosófico; outro quer ser o editor dos livros de Helena; a própria Annie luta para manter o seu papel de mediadora dos conflitos. O conjunto dessas perturbações intestinas evidencia que a Sociedade Teosófica acaba se deixando penetrar pela “mistificação” que a cerca, situação que se agrava com os desmaios e doenças de Helena.

Neste ponto de ameaça vertiginosa às conquistas de Helena, o palco é tomado pelas controvérsias e murmurações em torno das atividades do Clube dos Milagres e da Sociedade Teosófica. Reaparece então o desfile carnavalesco que havíamos visto no processo da iniciação espiritual de Helena, mas já agora no âmbito da encenação da morte da protagonista. E, desta vez, vem com uma novidade: o desfile projeta o plano biográfico sobre o espiritual, uma vez que no cerne das estâncias venusinas traduzidas por Helena está justamente a experiência do transporte “consciente” entre vida e morte.

Sons de música fúnebre e lamentos combinam-se então com projeções de imagens ilustradas dos Livros dos mortos do Tibet, ampliando a variedade de linguagens artísticas aplicadas por Plínio Marcos na peça. Para essa composição final, a rubrica prevê, em meio à composição dessa “visão irreal”, a retirada dos artifícios empregados para compor a figura de Helena. Ou seja, o gesto de Helena despindo-se em cena dos seus disfarces e truques de maquiagem revela que, neste momento, retornava-se à cena inicial, o que poderia mesmo fazer com que o espectador tomasse todas as ações da peça como um grande flashback. E a ser mesmo assim, nada impediria tampouco que interpretasse esse flashback não como uma recopilação objetiva, mas como um registro do fluxo mental de Helena colocada diante do momento decisivo de sua morte.

Então o que passa a ser essencial em sua caracterização é apenas o “fio dourado” que pende da sua cabeça, como a manter o seu espírito ainda ligado à vida terrena. Os vários desfiles carnavalescos de personagens que ocorrem ao longo da peça poderiam, então, ser revistos como flashes decisivos da consciência de Helena a repassar a própria vida no instante transitivo da morte. Os flashbacks não seriam apenas cenas do passado da sua existência retomados pela narrativa, mas lampejos de um fluxo de consciência em progresso.

O momento de encontro de Helena com a morte é longamente ritualizado. A abertura do desfile final se dá com uma apóstrofe de Helena à própria morte (Tutelar Preciosa). Trata-se de um protocolo cerimonioso, adequado a uma oração contrita que lhe permite suplicar à personificação da Morte que não a “deixe errando na planície” e na “ilusão”, mas conceda-lhe o “som natural da realidade”, guiando-a “pela via do amor” e defendendo-a contra as “emboscadas” preparadas pelas “divindades bebedoras de sangue”.

Tais entidades malignas, que na peça são identificadas com os mesmos Homens Soturnos avessos à evolução humana, evidenciam então que as forças que ameaçam a alma no seu trânsito do corpo para o plano post-mortem são as mesmas que atacam o conjunto da humanidade. Vale dizer, na leitura que Plínio Marcos faz da “doutrina secreta” de Blavatsky, os obstáculos que impedem o fortalecimento espiritual dos indivíduos são de mesma natureza que aqueles que se posicionam contra a história coletiva dos homens.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho