Seguindo com a apresentação da peça Madame Blavatsky, de Plínio Marcos, encenada em 1985, depois do Faquir, a primeira personagem na iniciação de Helena, apresenta-se o Mestre. Ele faz uma entrada triunfal no palco montado em um “elefante”, o que obviamente mantém o aspecto de ilusionismo fundamental na montagem. É dessa posição espantosa, o dorso de um elefante trucado, que o Mestre faz Helena pronunciar o juramento de pertença à “grande fraternidade da compaixão”, que até então mal sabemos o que seja. Em seguida, anuncia-lhe que ela já “atravessou o manto da noite”, mas se encontrava ainda muito longe da “modalidade primordial do ser”, lá onde reside a “essência de todas as coisas” — uma formulação igualmente obscura, a qual por isso mesmo deixa claro que Helena apenas começava a trilhar o caminho de sua iniciação. Nem por isso, o seu caráter voluntarioso deixa de se evidenciar, pois Helena pede logo ao Mestre que lhe seja concedida a “imaginação dos poetas” e o “alento para a luta”, o que descreve também como uma “revolta santa”, repleta de “justa cólera”.
O vocabulário iniciático e pomposo utilizado pelas personagens cria certo clima de esoterismo difuso, que incorpora vários clichês do gênero, mas é eficaz como procedimento de prender a atenção do público menos pelo que significa do que pelas alusões oblíquas proporcionadas pela cena esquisita, de gosto kitsch e surrealista. Diante do marajá e, sobretudo, do ilusionismo da presença do elefante no palco, uma frase como “o vinho do conhecimento integral” é só “para fortes e audaciosos” soa menos como ideia do que como teaser que excita o espectador para novos eventos intempestivos no desfile que está a ocorrer no palco. Nessa altura, aliás, desfile é o nome preciso a dar-se ao tipo de encenação proposta por Plínio Marcos, cujo correlato principal é uma representação circense e carnavalesca, na qual a tendência do espectador é menos se perguntar pelo sentido profundo do que já foi, ou mesmo do que está sendo, do que pela surpresa do que virá a seguir.
E o que vem a seguir ao desfile iniciático é a própria Helena entrando em transe (“como se estivesse iluminada”), pronunciando um discurso diretamente político que alude aos ataques sofridos pelos “irmãos hindus”, que são causados por “missionários protestantes” na Índia apoiados pela propaganda oficial britânica e pelo “poder econômico de grupos estrangeiros” a fim de produzir “lavagem cerebral” e “baixa magia” com os propósitos mais venais. A invectiva se aplica, claro, como crítica histórica ao “odioso colonialismo” do imperialismo britânico, mas também como palavra de ordem que se podia aplicar ao presente nacional contra a exploração das riquezas brasileiras pelas empresas multinacionais num processo de globalização econômica que já estava em marcha.
Vale notar ainda que a carga anticolonialista do discurso de Helena, na peça de Plínio, não se separa da representação místico-espiritual que está sendo encenada. Assim, Helena explicitamente repudia todas as religiões que colocam Deus “fora do homem e acima da natureza”, pois seria este o fenômeno na base da “superstição”, do “dogma” e do “autoritarismo”. Contra tudo isso — vale dizer, as religiões dogmáticas, o autoritarismo político e a exploração econômica das potências coloniais do passado e do presente — estaria a verdadeira “religiosidade”, assentada sobre a consciência de que os homens, iguais entre si, são os verdadeiros deuses. Portanto, a mensagem de Helena Blavatsky, na versão pliniana, politiza certa teologia imanentista na qual Deus opera essencialmente como graça permanente dentro do homem que é parte integrante da própria natureza. E não apenas: na peça, a ação de Helena é também pragmática e terapêutica, traduzindo-se por um poder imediato de cura — atributo taumatúrgico que a peça ilustra quando Helena atende uma mulher que lhe pede alívio para a dor.
Também é importante notar que, em outro momento da peça, quando Helena está em vias de ser agredida por dois missionários ingleses, Plínio Marcos propõe, na rubrica, um procedimento de fading que abaixa a luz e depois a acende em outro ponto do palco produzindo um efeito de transporte de Helena para “outro plano”, rubricado como “totalmente irreal”. Ali tampouco Helena está a salvo de ataques, pois é sucessivamente cercada pelos monstruosos Homens Soturnos, figuras ameaçadoras, de aspecto vampiresco, que portam diversos instrumentos de tortura e a acusam de ter roubado “As estâncias de Dzian”, com o objetivo de fazer “revelações” que desequilibrariam o “subconsciente da humanidade”.
A ação de Helena é, pois, prometeica — os seus estudos, a sua tradução das estâncias venusianas, roubam um segredo hermético, exclusivo, e o entrega aos homens —, mas o que poderia significar o tal “desequilíbrio no subconsciente”? Aparentemente, o abalo trazido por suas revelações criaria as condições para a superação do default psíquico preconceituoso, incentivado pela doxa vigente, que travava a evolução humana. Por conta então da sua disposição de romper os selos que impedem o acesso do homem aos saberes secretos, Helena é violentamente torturada, o que se apresenta no palco não de maneira realista, e sim no mesmo processo de desfile de personagens que conduz toda a peça. Assim surgem diante dela, em sequência, a mãe, que lhe diz que apenas a coragem de suportar a dor fará com que tome em suas mãos o próprio destino; a cigana, que lhe fala da imortalidade obtida por meio da morte; o padre, em chamas, que a acusa de estar possuída; e, novamente, no apogeu da tortura, o terrível bode Blavatsky, com o falo na mão, a comandar uma orgia demoníaca em que os monstros se masturbam e se sodomizam mutuamente.
Ou seja, há um componente pornô-cômico-grotesco no delírio de Helena que pode ser interpretado como análogo tanto dos dilemas morais e mentais que sofre, como da ação repressora exercida pelos poderes institucionais, como a Igreja e o Estado. Seja como for, trata-se sempre de um delírio vivido no cerne do processo iniciático, desta vez conduzido por caminhos sombrios e ameaçadores que levam a uma catábase, uma descida do iniciado aos infernos, não apenas para provar o seu valor pessoal, mas também para receber ali as revelações sobre a sua destinação última.
Há também nessas cenas de tortura um paradoxal viés estilizado, abertamente artificial, manifesto tanto no aspecto cômico-erótico, como na presença da bancada de máscaras ao lado dos atores que trocam de papel e de roupa diante dos olhos do público, como se estivessem no camarim de um teatro de revista infernal. Trata-se da representação de um pesadelo-em-desfile no limiar de uma grande revelação politicamente transgressiva e misticamente ecumênica, que, no caso de Helena, equivale à aceitação de uma pesada vocação poética e simbólica, qual seja a de romper o tabu dos mistérios vedados aos homens e traduzir As estâncias de Dzyan, divulgando-as ao mundo tateante e cego dos homens.